“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

ok

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Reencontro com a Igreja à Brasileira

Matéria do Magazine «Foma» (Tomé), por Denis Mikhanko, diretor da filial de São Peterburgo.

Às portas do verão no templo ortodoxo de Santa Zenaide no Rio de Janeiro reuniu-se um grupo incomum — um famoso diretor de cinema, uma famosa atriz e... o ministro da cultura do Brasil. O que os trouxe alí foi o Sacramento Ortodoxo do Batismo.

«Santa Teresa»
«Nossa igreja ainda não havia recebido visitantes como esses de hoje...» - disse o pároco, padre Basílio Gelevan, com visível emoção. Sem dúvida, quando um brasileiro entra em uma igreja ortodoxa, mais ainda quando adota a Ortodoxia — não é um grande acontecimento e o sacerdote, que serve no Brasil, nem se admira tanto. Entretanto, foi ministrado recentemente um batizado muito incomum — até mesmo para os padrões locais: uma família de atores famosos batizou o seu filho de oito anos com a presença... do ministro da cultura do Brasil, o veterano da música popular brasileira, cantor e compositor Gilberto Gil. O ministro chegou de táxi ao bairro de Santa Teresa, onde encontra-se a única igreja ortodoxa russa do Rio de Janeiro. E não foi por acaso: seu motorista particular teria muita dificuldade de chegar ao endereço pelas entrelaçadas ruas desse bairro. Ao desembarcar, o senhor Gilberto Gil logo atraiu a si todas as atenções: Um afro-brasileiro com cabelo à jamaicana, calça e camisa solta, ambas de um branco deslumbrante foi uma personalidade muito incomum na igreja russa, construída dentro das melhores tradições do norte da Rússia. Não havia muita gente a ver com admiração o ministro — apenas alguns brasileiros que haviam permanecido na igreja após um curso semanal de língua eslava antiga ministrado pelo pároco. No mais, como deve ser nas cerimônias de batismo, as pessoas que vieram à igreja nesse dia foram os parentes e amigos. É de se entender: Quem, se não uma família de artistas, para ter relações estreitas com o ministro da cultura. A mãe do menino é Fernanda Torres, premiada no Festival de Cannes como «melhor atriz» pelo filme «Eu sei que vou te amar» (1986) e da mesma forma na Associação Paulista de Críticos pelo filme «Meia noite» (2000). A internet indica mais de trinta filmes com a sua participação. Seus pais — a atriz Fernanda Montenegro e o diretor de cinema Fernando Torres - também são muito conhecidos. Da atriz Fernanda Montenegro diz-se que oito entre dez dos filmes brasileiros mais populares têm a sua participação e ela é tão solicitada, que se permite não fazer novelas, mas somente atuar no teatro e em filmes de longa metragem.. Quanto a Fernando Torres (quase perfeito xará de sua filha), também realizou muito no teatro e no cinema, personificando em muito a arte dramática brasileira para o mundo inteiro. Fernanda Torres está casada há oito anos com o diretor ciinematográfico brasileiro que não tem nada de brasileiro no seu nome e sobrenome — Andrucha Waddington. A mãe de Andrucha é Irina — que veio para o Brasil entre os emigrantes russos do pós-guerra e já mora há muito tempo no Rio de Janeiro. É claro, diz ela, que «nos documentos consta o nome Andrew, mas nunca em toda a vida alguém o chamou assim — para todos ele é o Andrucha. Desde a infância eu lhe dizia que ele seria o único no mundo a ter esse nome». E realmente, nos seus filmes o nome do diretor escreve-se, em letras latinas: Andrucha Waddington. Seu filme «Eu, tu eles» (2000) conquistou um premio especial em Cannes, e o «Casa de areia» foi apresentado no festival «Cinema Brazil Grand Prize» em doze categorias simultâneas. Nesse dia toda a família reuniu-se na igreja de Santa Zenaide para batizar o Joaquim Waddington nos seus oito anos de vida.

E se os padrinhos forem católicos?
O menino desejava muito que a sua madrinha fosse a tia — irmã de seu pai, - Elisabeth Waddington. Entretanto, criou-se uma situação nada simples, porque ela era católica. Elizabeth e também a mãe do menino, pensavam que o sacerdote fecharia os olhos a este respeito — seja pelo fato de estar a paróquia em um país católico, seja pelo «estrelismo» das pessoas que vieram à igreja. Mas o pároco, padre Basílio, encarou a situação de modo diferente: «Padrinho de batismo deve ser ortodoxo». O resultado foi inesperado: Meia hora antes do batizado do pequeno Joaquim sua tia Elizabeth Waddington, preparando-se para ser a madrinha, confessou-se e adotou a ortodoxia.* Mais tarde, Elizabeth contou que essa mudança não foi por acaso, mas foram os pingos nos «is» - resultado de uma longa meditação e a formalização do que ela realmente desejava em toda a sua vida. Não é difícil entendê-la, pois ela cresceu com sua mãe, na sua família sempre se comemorou a Páscoa ortodoxa. Ela é vivamente interessada pela Rússia e, em especial, pela Ortodoxia. «A fé sempre exige sacrifícios e renúncias - compartilha - e parece-me que as pessoas na Rússia já não estão preparados para tais sacrifícios...» Fiquei admirado: «Por que a senhora pensa assim?» Ao que Elizabeth explicou: «Porque nos setenta anos de poder soviético em que a fé foi proibida eles tinham de sacrificar-se tanto, que agora — quando «pode-se tudo» - eles cansaram-se do sacrifício». Porém Irina, mãe de Elizabeth, que estava atuando como tradutora da nossa conversa, sem esperar minha reação, respondeu: «Não, Beta, você não entende algumas coisas: na época soviética o que foi proibido não foi a fé, mas a religião. A fé continuou sempre viva nas pessoas...» «Vocês viram os seus rostos? - disse Irina após o batizado — Choraram durante toda a cerimônia.» E realmente, durante a celebração do Sacramento (e também depois) a madrinha e os pais encheram-se de emoção. Só quando Fernanda cruzou o olhar com algum dos presentes na igreja lembrou-se que deveria estar sorrindo — por educação, além do que, era uma festa. O mais frequente foi que a atriz limpava suavemente as lágrimas dos olhos... Andrucha Waddington, mesmo sem segurar a emoção, foi mais contido. Não é de se admirar: desde a infância ele é ortodoxo e a cerimônia religiosa, por mais tocando que fosse, já é do seu costume. O mesmo não se poderia dizer do amigo da família, que chefia a cultura do Brasil. Gilberto Gil não chorou, claro. Mas é difícil dizer que estava sem emoção — estava totalmente concentrado na celebração. Os atos do sacerdote, os três derramamentos de água sobre a cabeça de Joaquim, o corte de fios de cabelo da cabeça do menino — nada fugia ao olhar interessado do senhor Gilberto Gil. O padre Basílio pediu justamente a ele para fazer a leitura de um trecho da epístola de São Paulo aos Romanos (em português). O ministro ficou admirado, mas cumpriu o pedido.

Conservar as raízes?
«Naquele espetáculo eu fiz o papel de Nina», - conta Fernanda Torres sobre a peça «As gaivotas». Nada de especial: os artistas gostam de falar dos seus personagens. Só que o nome «Nina» foi pronunciado de modo incomum: o «i» fechado e não aberto. Não é de se estranhar: A famosa atriz brasileira fala em português... Na peça ela fez o papel de Nina Zarechnaya no palco do principal teatro do Rio de Janeiro. «O sistema Stanislavski, sem dúvida, só podia ter nascido na Rússia» - considera Fernanda. Por que? Porque do ponto de vista da atriz, no profundo mergulho para dentro da essência do ser humano, que é a característica do sistema, encontra-se a visão do homem puramente russa. «Procurar ver o que é o principal no ser humano e não o secundário, parece-me ser a visão russa. E quem me ensinou a ver o ser humano assim foi Tchekov. Porque ele exprime com nitidez tudo o que é importante e valioso em nós, mas com maior nitidez ainda, tudo o que é prejudicial. Para Fernanda Torres esta idéia materializou-se no trabalho artístico: «Depois do trabalho em «As gaivotas» esta abordagem em relação às pessoas tornou-se para mim um método criativo, que vou usar em toda a minha vida; é com este critério que eu vou encarar, de agora em diante, todos os outros papéis e personagens. Para mim eu formulei isto da seguinte maneira: é preciso entender o caráter russo e então será possível fazer qualquer papel». Falando do caráter russo, Fernanda Torres sempre fala do marido: «Sofrimentos tão profundos e agudos como nele se vêm, não encontrei em nenhum brasileiro. Parece-me que eles só podem nascer na alma russa». De início essas palavras podem parecer inocentes: para o olhar russo Andrucha Waddington é, na verdade, um estrangeiro, que pensa em português, entende de modo geral, mas não fala a língua russa. Ele não se orgulha do seu nome «russo». Morando no Brasil, ele não pensa na Rússia como algo «seu, conhecido e entendido», o que por vezes é tão característico nos descendentes dos emigrantes. Sua «russidade» está na relação consciente com a própria origem. Ele, como se costuma dizer, «conserva as raízes». «Sabe, não estou seguro de ter base para me considerar um russo em toda a extensão, diz Andrucha. -Mas o fato de que historicamente sou russo, para mim é evidente. Eu sinto isto. E uma boa parte deste sentimento, claro, é a fé. Fui batizado aqui no Rio de Janeiro, há muitos anos, na igreja de Santa Zenaide. E dois dos meus filhos foram também batizados aqui. Estou feliz porque hoje foi igualmente batizado aqui o meu terceiro filho. Estou ainda mais contente porque minha esposa, que foi católica a vida inteira, hoje adotou a Ortodoxia...» ...Aconteceu que meia hora antes do batizado do menino o padre Basílio ouviu duas confissões — de Elizabeth Waddington, que seria madrinha e de Fernanda Torres. Assim, também a mãe do menino tornou-se ortodoxa. Se podemos presumir que para a tia de Joaquim a passagem à Ortodoxia era, além do mais, indispensável (de outra forma o batizado não seria possível), para Fernanda não havia esta «necessidade objetiva»... Então, por que?

A escolha não é por princípio?
«Por muito tempo eu caminhei nesta direção, - conta Fernanda, já depois do Batizado. -De modo geral o caminho para a fé não pode ser rápido e direto; a decisão de passar para a Ortodoxia não pode nascer de uma hora para outra». Principalmente no Brasil — país em que todas as formas de fé são consideradas «iguais» e não há uma religião tradicional. Na opinião dos próprios brasileiros, aqui a pessoa é quase obrigada a reconhecer que uma confissão religiosa de nenhuma forma contradiz a outra. Significa isto que a escolha da confissão religiosa não se prende a princípios e, em grande medida — simplesmente não precisa ser feita. Fernanda também viveu com esta convicção. «Minha juventude foi vivida no nihilismo e no ceticismo. A aparente igualdade das religiões levou, então, à negação da religião como tal». Mas com os anos a necessidade da fé começou a ser sentida com força cada vez maior. Para a atriz ficou evidente: «A falta de fé — é caminho para a depressão e a pessoa humana sem fé — simplesmente fica perdida». O momento de virada na conscientização da necessidade da fé veio com o filho. «Comecei a pensar sobre o presente, sobre o futuro, sobre o seu destino e sobre o meu. De modo geral parece-me que quando vêm as crianças a pessoa é simplesmente empurrada para a fé. Bem, pode ser apenas o meu sentimento pessoal». Pode ser que sim, mas não deve ser por acaso que a Ortodoxia entrou definitivamente na vida da Fernanda, justamente no dia do batizado do seu filho e quando, nas palavras do sacerdote, «nasceu um novo cristão». É claro que Fernanda começou a conhecer a Ortodoxia antes. Seu marido é ortodoxo, seus filhos do primeiro casamento — também. Mas a verdadeira abertura, no entender da atriz, foi para ela a literatura russa: Tchekov, que ela representou no teatro e Dostoievski. «Foi através deles que cheguei à fé». «Crime e castigo», «O jogador», «Os demônios» para Fernanda são mais do que simples literatura: são a expressão da cultura russa, pela qual foi se apaixonando cada vez mais a cada página, segundo o seu próprio reconhecimento. Por que? «Porque na cultura russa o anseio pela fé — é o principal. Em seus contos Dostoievski mostra justamente isto: mesmo que a pessoa se encontre na beira do precipício e esteja quase a cair nele, ela tem ao que se agarrar para sobreviver, para voltar — é a fé». E como que para sublinhar essa particularidade da cultura russa, a atriz Fernanda Torres trouxe um exemplo da sua vida profissional: «A cultura americana, por exemplo, é inteiramente baseada na psicologia. Sabe, para representar uma peça americana no teatro, sempre convidamos um psicólogo e ele nos explica o que faz sofrer o homem, como é possível resolver o seu problema — assim nós entendemos o que devemos representar. Agora, imagine uma peça russa... Não há no mundo nenhum psicólogo que possa entendê-la! Nenhum psicólogo vai ajudar!» Quando o ator pensa na Ortodoxia, vem naturalmente a pergunta: «Até que ponto a fè ajuda, ou atrapalha, na vida profissional». Honestamente, a resposta mais frequente é: A fé e a profissão têm uma ligação mínima uma com a outra. As palavras de Fernanda Torres destroem o estereotipo: «Vejam só: a missa ortodoxa parece exteriormente muito teatralizada, embora, é claro, nada tenha em comum com o teatro — isto é, com a representação teatral. Mas, ainda assim, ela obriga a atentar para o que acontece — o que você faz, as palavras que você pronuncia, a música que você ouve. Hoje, durante a cerimônia sacramental não foi simplesmente um voltar-se para o Ocidente e depois retornar ao oriente: o que fizemos foi um movimento consciente, porque o sacerdote explicou que este ato simboliza a renúncia a satanás. Isto é tremendo! Pois isto é conhecimento, com o qual vou encarar o teatro! Por isto parece-se me que a Ortodoxia só pode enriquecer a profissão artística». Antes da celebração do batismo Fernanda saiu da igreja com os olhos vermelhos de lágrimas. «O padre Basílio foi firme ao dizer que os dois padrinhos não podem ser católicos e que o batismo só é possível se a tia adotar a Ortodoxia. E vocês sabem, eu chorei...» - contou a atriz. Mais tarde Fernanda explicou que foram lágrimas... de alegria. «Vi com meus olhos como o sacerdote permaneceu fiel ao que é imutável nos séculos», -prosseguiu. Seria possível supor qualquer motivo para as lágrimas (que fossem até lágrimas de alegria), menos este. Entretanto, Fernanda explicou: «Simplesmente, a Ortodoxia tem um traço muito atraente para mim: Não muda suas tradições para se conformar aos tempos e ventos modernos». Há uma idéia que se estabeleceu, de que a aquisição da fé traz a necessidade de renunciar a algumas coisas e mudar em alguns aspectos. Fernanda reconhece que não sente isto. Talvez por agora. Porém, sente algo totalmente diferente: «Veio-me algo muito importante, foi-me acrescentado algo muito valioso. No mínimo, através da Ortodoxia vou poder aproximar-me ainda mais da cultura russa. Para mim já significa muito, muito».
Na casa do pároco do templo de Santa Zenaide (da esquerda para a direita): A avó Irina, Elizabeth Waddington, Denis Mikhan'ko, diretor da filial de São Peterburgo da revista «Foma» (Tomé), Gilberto Gil, ministro da cultura do Brasil, Fernanda Torres e Andrucha Waddington.