“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Jesus entre os samaritanos (Jo. 4,5-42)

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amados irmãos.

Quase não temos esse Deus Salvador do mundo, foi por pouco, muito pouco. Isso, é claro, se imaginarmos que a Igreja é apenas obra dos homens. Pois os Apóstolos se reuniram em Jerusalém, no chamado “Proto Concílio de Jerusalém”, para decidirem se os seguidores de Cristo necessariamente precisavam ser judeus e cumprir a antiga Lei para também seguir a Cristo. Ou se essa nova “lei”, essa Boa nova, era para todo o universo. Esses homens, quando tomaram a decisão, disseram: “Nós e o Espírito Santo decidimos...”. Até parece muita pretensão, mas a verdade é que é o Espírito que inspira e ilumina os homens que servem em Igreja. Mas de onde eles tiraram a ideia de que o Cristo veio para o mundo inteiro e não só para os Judeus, eles inventaram? Não, tiraram desse episódio que acabamos de ouvir. Esse é um dos episódios, houve outros.

Mas vejam bem, a palavra sicário, que significa traidor, vem dos habitantes dessa cidade chamada Sicar. Os judeus tinham ódio desse povo, porque ele tem origem numa das Tribos de Israel que se misturou com outras cinco tribos pagãs. Fizeram um sincretismo religioso que resultou na pratica de um ritual completamente diferente daquele que se realizava no Templo de Jerusalém. Eles eram considerados como um enclave de traidores, seres perigosos, corruptores. Cristo passa por cima disso tudo e, ainda por cima, se dirige a uma mulher. Os Apóstolos se espantaram dele estar falando com uma mulher. Outro escândalo! Um homem sozinho, em um lugar deserto, dialogando com uma mulher.

Essa mulher, nós sabemos, é a imagem de nossa alma. Ele diz: “Vai, chama teu marido e volta aqui”. Ela responde: “Não tenho marido”. Jesus treplica: “Falaste bem: ‘não tenho marido’, pois tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido”. Essa mulher fora submissa aos cinco maridos da mesma forma que nossa alma encontra-se submissa aos cinco sentidos. A nossa psique reage, julga, em função do que os nossos sentidos captam. Se nós gostamos é bom, se nós não gostamos é ruim. E assim, emocionalmente, apaixonadamente, nós nos conduzimos na vida. Quando ela diz que não tem marido, Cristo confirma “o que agora tens não é teu marido”, ou seja, não é um dos cinco sentidos. Trata-se de um outro sentido que não submete nem é submetido. A mulher unida a esse sexto sentido é a imagem da alma em plena contemplação. Ela está ali, a borda do poço, prestes a receber a Água viva, que nada mais é do que o Espírito Santo de Deus, dialogando com Cristo, em plena contemplação. É uma imagem bela, poética, bonita de um momento de oração do fiel. Um diálogo íntimo e verdadeiro com Cristo. E a comprovação de que o sexto marido é outra coisa está em que ela mesma diz que sabe que um Messias chamado Cristo virá e se revelará como o Salvador. E, nesse momento, Ele se revela: “Sou eu, que falo contigo”. É uma imagem linda.

Depois que os discípulos retornam, Ele lhes fala: “Erguei os olhos e vede os campos: estão brancos para a colheita” e “Eu vos enviei a ceifar onde não trabalhastes”. Isso para nós é muito importante, é algo que deve estar sempre diante de nossa atenção. Nós somos um povo de Reis, Profetas e Sacerdotes. O sacerdócio inaugurado por Cristo permanece no interior da Igreja com todo o povo reunido. Nós temos de continuar essa colheita. Foi dito que a seara é grande e os operários são poucos. Somos poucos sim, mas não podemos deixar de trabalhar. Temos que colher para nós o que outros semearam e continuar semeando para que outros venham e colham. Caso contrário, nós não estaremos fazendo nada. Se nós somos um povo de sacerdotes, nós não podemos egoisticamente estar na Igreja apenas pensando na salvação pessoal e romper essa cadeia da Tradição. Assim, não vamos nos salvar nunca. Nós estamos aqui porque somos o sal da terra, a luz na escuridão, o levedo da massa. Não adianta fazer discurso, não adianta convencer. Só precisamos (e devemos) é ter atitude. O que importa é o nosso comportamento e a nossa maneira de ser. Se nós não fizermos como essa mulher. Se nós não mergulharmos em nós mesmos para contemplar e dialogar com Cristo e não cumprirmos o que Ele disse: “Chegará o tempo em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade”.

Tudo o que temos aqui (os ícones, o turíbulo, a liturgia, os sacramentos, a música, o incenso) são apenas alavancas. São apenas meios materiais que a nossa alma precisa para se elevar em direção a Deus. Nós ainda estamos aprisionados aos cinco sentidos. Então, nós temos que ver ícones, cheirar incenso, ouvir música e saborear o corpo e o sangue. Nós ainda temos que fazer exercício com os cinco sentidos. Mas isso é um estágio. É um momento transitório, para que um dia, com espírito puro, adoremos o Deus que é puro Espírito. Para isso, é necessário que nós vivamos como servidores de Cristo, seguindo Seu exemplo. É necessário que, como essa mulher samaritana, nós façamos o exercício de contemplação, antecedido pelo jejum e pela oração. Mas, também é necessário que nós, como um povo de sacerdotes, e a exemplo dos Apóstolos, façamos a colheita do que já está pronto para ser colhido e a semeadura do que, mais tarde, outros colherão. Se não, nós não estaremos fazendo nada. É nesse sentido que a Igreja é hospital e escola. Porque é pela Igreja (ou seja, pelos ícones, pelo incenso, pela música, pelo ritual, pela oração e pelos sacramentos) que a mensagem de Cristo, inaugurada há dois mil anos, se perpetua.

Quando Cristo diz que os Apóstolos colherão onde não semearam, Ele está falando da Lei de Moisés, dos profetas e até da cultura, do processo civilizatório. Porque, tempos atrás, quando Cristo encarnou, foi dito que os tempos estavam maduros. Antes da encarnação do Verbo, houve tempos em que a humanidade vivia numa barbárie tal que, na intenção de adorar Deus, cometia sacrifícios humanos. Foi necessário toda uma preparação da humanidade para que ela estivesse pronta para ver e conviver com o Messias prometido. É nesse sentido que Ele diz que colherão onde não plantaram. Quando Cristo vem, é a plenitude dos tempos. Depois, Ele parte para os céus. Desse momento em diante é só corrupção e decadência. Pois nesse mundo, nesse plano (e planeta) que estamos agora encerrados, todas as coisas nascem, se desenvolvem, se desgastam e fenecem. É assim com cada coisa porque no plano geral essa é a lei. No aspecto espiritual não se foge à regra, há uma correspondência entre o material e o imaterial.

A plenitude dos tempos aconteceu e agora o nosso mundo está se afastando dessa plenitude. Quanto mais o tempo passa, mais difícil espiritualmente vai ficando a vida. Há um apotegma de um Pai do deserto em que um monge interroga seu pai espiritual perguntando o que era necessário para ser salvo. E ele diz que é não comer, não dormir, orar tanto quanto respirar e cumprir os mandamentos de Deus, ou seja, o mandamento do amor. E a próxima geração? A cada nova resposta do Pai, o monge volta a perguntar pela geração seguinte. E, por último, o pai espiritual diz para o monge calar-se, concluindo, que chegará o tempo em que, para ser salvo, basta manter-se vivo. Basta manter o dom da vida em si.

Mas o Verbo tomou nossa carne. Uma Ponte ou Portal para uma nova realidade ficou estabelecido. Cristo, Filho unigênito e eterno não está limitado às leis do mundo natural, Ele transcende tudo. É por isso que: Por Ele, com Ele e n’Ele a Salvação acontece. A alma (a Samaritana) reencontrou-se com Deus nas bordas da água do poço. Belíssima imagem da Igreja e do batismo da regeneração. Qualquer um, a qualquer momento que se aproximar do Cristo ultrapassa os cinco sentidos e as leis naturais deste mundo. Essa é a utilidade da Igreja e de seus sacramentos. A Salvação é exatamente transcender os limites do mundo natural, não ficar retido na morte, e ressuscitar na Vida Eterna, santificado pelo Espírito Santo.

Nós estamos, ainda aqui, com a possibilidade de usar a nossa liberdade e optar sobre que tipo de vida nós queremos ter. E, se nós temos essa liberdade, nós temos que usa-la com consciência do que queremos. E se nós somos verdadeiramente cristãos, nós temos que seguir os passos de Cristo. E para isso temos que semear, porque o talento que nos foi dado é para ser multiplicado. Nós temos que semear através do nosso comportamento, com nossas atitudes e com o nosso ser por inteiro. Não bastam só as intenções. A carne, cuja ressurreição nós esperamos, tem de participar desse processo salvífico. Tem a nossa inteligência, tem a nossa alma nas orações, na contemplação. Tem a nossa boa vontade, mas tem que ter também o nosso comportamento, as nossas atitudes. É por isso que muitas vezes Cristo agiu, quando podia apenas estalar os dedos. Ele agiu como homem para mostrar o caminho que deveria ser seguido.

Essa atitude de Cristo, de estar diante de um poço, sozinho, conversando com uma mulher sicária, era o absurdo dos absurdos para a mentalidade judaica. Isso é para provar que nós não devemos ser ritualistas, nem achar que, porque somos cristãos ortodoxos, estamos sentados sobre a salvação. Como se por causa disso estivesse tudo feito e garantido. Não. Nosso Senhor sendo judeu não ficou restrito à Lei. Como discípulos do Cristo nós temos que ultrapassar as paredes desse templo. Nós temos que agir no mundo. Como Cristo, que ultrapassou os limites da Lei mosaica, nós temos que ultrapassar os limites desse conforto, desse útero em que estamos reunidos, e partir para o mundo para nele viver a nossa fé. Nós temos que agir no mundo. Se não, nós estamos sendo egoístas e os egoístas não são discípulos de Cristo. É isso que significa o Evangelho que foi proclamado hoje.

Se nós quisermos verdadeiramente beber a Água viva e contemplar Cristo face a face, como aquela Samaritana, nós temos que fazer como ela e como Ele, ultrapassar os limites da nossa humanidade na busca dessa verdade espiritual. Em busca desse encontro que Cristo nos prometeu. E, como Ele não nos enganaria, nós podemos confiar em Sua promessa e levarmos a nossa vida de acordo com isso. Para que nós possamos, na Vida eterna, dialogar face a face, com o Pai, com Filho e com Espírito Santo. Amém.