“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

"Os olhos são a luz do corpo - Mt. 6, 22-33"

Metropolita Anthony de Sourozh
http://www.metropolit-anthony.orc.ru
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Entramos em contato com o mundo e dele tomamos conhecimento através dos nossos sentidos; e através de todos os nossos sentidos não só tomamos consciência do mundo, como também nele estamos envolvidos; todos os nossos sentidos nos colocam em contato com o mundo dos objetos, com todas as coisas a nossa volta, como também nos apresenta sensações e impressões imediatas que, por vezes, nos modificam profundamente.

A nossa vista, da qual o Senhor nos fala hoje em Seu Evangelho, é o único modo pelo qual podemos tomar conhecimento do mundo serenamente, em completo repouso de todas as energias de nosso humano ser, com a condição, como diz o Senhor, de que nossos olhos sejam puros e luminosos, que a vista permita apenas a luz entrar no nosso entendimento através dela.

Um dos escritores ingleses modernos nos dá duas imagens que eu acredito nos permitirá entender algo desta passagem dos Evangelhos. Num romance, ‘All Hallows Eve’ (Todo louvor a Eva), Charles Williams nos apresenta uma jovem senhora que morreu num acidente e cuja alma gradualmente encontra seu caminho no novo mundo no qual penetrou.

Ela dá conta de si às margens do Tâmisa; ela mira as águas, e subitamente vê as águas do Tâmisa como nunca as vira no passado, quando sua alma era dotada de um corpo; então, sentia uma repulsa por essas águas escuras, oleosas, sujas, porque sua imaginação imediatamente conectava aquelas águas com o tato e impressões imediatas do corpo.

Mas agora, essa alma está livre do corpo e ela vê essas águas do Tâmisa livremente, tal como são, como um fato; ela vê que aquelas águas são exatamente o que deveriam ser, sendo as águas de um rio que corre por uma cidade grande, juntando toda a sujeira dela e a levando embora. E por ela não ter mais a costumeira repulsa do corpo e da imaginação, essa alma, através da opacidade daquelas águas, começa a ver nelas mais e mais profundamente; no fundo, ela descobre uma camada de água mais pura, uma maior translucidez, e ainda mais além e mais profundo, uma camada transparente; e nas profundezas daquelas águas que cruzam a cidade grande – e essa cidade é também chamada a ser, um dia, a cidade de Deus – ela vê uma corrente de águas extremamente límpidas, a água da vida eterna, a água primordial criada por Deus, a água sobre a qual Cristo fala à mulher samaritana; porque ela estava livre da reação pessoal e da repulsa, a falecida podia ver, através do negrume superficial, as sucessivamente mais claras camadas de luz.

Por estarmos sempre emaranhados em nossas reações auto-referentes, tendemos a ver através das camadas de luz, de algum lugar, uma escuridão que eventualmente criamos ou imaginamos; por estarem nossos olhos escurecidos, enxergamos a escuridão e nos tornamos incapazes de ver a brilhante translucidez lá no fundo.

Uma outra imagem que encontramos no mesmo livro talvez seja ainda mais trágica. Essa jovem senhora encontra-se parada em uma das pontes; ela sabe que aquela ponte não pode estar vazia, que as pessoas estão andando e os ônibus passando, que há vida no entorno; no entanto, ela nada vê ou percebe de tudo aquilo, pois, separada de seu corpo, ela só pode ver agora aquelas coisas e pessoas com as quais conectava-se pelo amor. E, como não amou ninguém a não ser seu marido, fica cega a todas as coisas em volta dela; há apenas o vazio, nada.

E é somente quando ela se torna mais e mais consciente de todo o amor - através daquele pouco amor que teve em sua vida, mesmo diminuto - que se conecta com esse amor único, com outras pessoas e outras coisas que lhe eram caras, e que ela começa a ver.

Não é este o modo como vivemos? Somos cercados de luz e nada enxergamos além de sombras flutuantes e o vazio. Quão freqüentemente um ser humano passa por nossas vidas sem deixar rastro algum, passa sem ser notado, apesar do fato de que havia uma necessidade ou havia uma luminosa beleza; mas, aquilo era irrelevante para nós, nosso coração não tinha nada com o quê responder àquilo, e lá estamos num ermo inóspito, mesmo cercados de riquezas.

Isto vem, novamente, do modo como enxergamos, como olhamos sem amor, e nada vemos; porque, só o amor pode nos revelar as coisas. E também, somos capazes de olhar de modo negro e mau: quão frequentemente fazemos más interpretações sobre as coisas que vemos? Em lugar de vê-las como fatos, enxergamo-las pelo entendimento de nossas almas enegrecidas e pela nossa experiência deturpada. Quão frequentemente interpretamos mal as ações e as palavras das pessoas, porque as vemos com um olhar enegrecido de antemão!

Assim, a palavra de Cristo nos conclama a uma atitude extremamente cuidadosa em relação ao modo como olhamos e enxergamos; devemos nos lembrar de que, se nada enxergamos, é pela nossa própria cegueira; se enxergamos o mal – ele vem da escuridão interior; se sentimos repulsa pelas coisas, freqûentemente isto é por causa do modo como ficamos centrados em nós mesmos e não podemos olhar com serenidade, com pureza de coração. Pois, afinal, enxergamos não apenas através dos nossos olhos físicos, que nos transmitem impressões, mas também através de um coração, que só pode ver Deus quando for puro. E, não apenas Deus em seu Ser Misterioso, mas Deus em sua Presença, através da graça e da beleza e da benção. Santo Isaac, o Sírio, diz que um homem que tenha um olhar límpido e um coração puro não mais enxerga a escuridão no mundo, pois ela é superada pela luminosidade da graça divina, operando e repousando em todas as coisas, não importando quão negras elas possam se mostrar.
Ao menos, aprendamos esta lição do Evangelho: sejamos cuidadosos em olhar com pureza, em interpretar com pureza de coração, e ajamos a partir do amor, para que, assim, sejamos livres para ver as transparências e luminosidades do mundo e no mundo. E, amá-lo, servi-lo, e estar neste mundo no lugar a nós designado por Cristo, abençoando em Seu próprio nome, acreditando nas coisas, tendo esperança em todas as coisas, e nunca cessando de amar, mesmo quando o amor significar entregarmos nossas vidas, seja a vida do velho Adão, que deve morrer para que o novo Adão viva, seja a vida do Novo Adão, que dá sua vida para que o mundo e os outros possam viver. Amém.
Boletim Interparoquial