“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

“A Busca de Deus na Tradição hesicasta”

Pode ser importante, para começar, tentar dar uma tradução, uma definição da palavra Hesíquia. É uma palavra de origem grega, que poderia ser traduzida como paz, silêncio, e talvez também como «tranqüilidade do coração». Vocês sabem como é difícil, partindo de uma palavra estrangeira, chegar a uma tradução exata. E é por esta razão que evoco vários significados. De qualquer forma, neste termo que significa paz, silêncio, repouso, temos que tomar o cuidado de não deformar o sentido da tradução. Por exemplo, se nos referimos à palavra repouso, não se trata de um repouso que evocaria o sono. Na tradição hesicasta não se trata, em absoluto, de dormitar, como veremos logo; muito pelo contrário, é uma tradição de ação e de vigilância.

Não quero lhes dar uma aula de história sobre as origens do hesicasmo. Apenas gostaria de recordar rapidamente como a hesíquia se desenvolveu. Como nasceu? Pois bem, eu diria que nós a recebemos como recebemos muitas outras coisas; é a atitude do Cristo no Novo Testamento. Temos aqui uma curta passagem do Evangelho que mostra a atitude do Cristo e que nos ajuda a compreender o que é a hesíquia.

Neste episódio, é a entrada de Jesus na sinagoga de Nazaré, seu país de origem, o que se evoca. Ele fala e é mal recebido, mal entendido. O final do relato nos conta: «Todos os que estavam na sinagoga, ao ouvirem estas coisas, ficaram cheios de ira. E, levantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até o despenhadeiro do monte em que a sua cidade estava edificada, para dali o precipitarem. Ele, porém, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho.» (Luc 4, 28-30). A última frase deste texto é significativa. O hesicasta, aquele que vai tentar viver na Paz do coração, na quietude, encontra o seu modelo na atitude do Cristo. Ele que, agredido, contestado, violentado, pôde passar através desse gentio, sem dizer nada, sem demonstrar nenhuma agressividade, porque tinha, evidentemente à perfeição, um coração cheio de paz. O seu coração silencioso, banhado de hesíquia, era a resposta à agressividade do entorno.

A partir do estudo e da meditação sobre o modo de ser do Cristo durante a sua vida, os cristãos, e principalmente os primeiros monges, buscaram a aquisição desta hesíquia, desta paz silenciosa, desta tranqüilidade do coração. E se pode dizer que o ideal monástico está totalmente ligado à tradição hesicasta. Podemos ouvir dizer, entre os cristãos ortodoxos, que existem monges hesicastas e monges não hesicastas. Não gosto muito de fazer esta distinção O monge, que é fundamentalmente um buscador de Deus, como outros buscam ouro, deve obrigatoriamente passar por esta busca de paz, de silêncio, de abandono, que entranha outras virtudes, como veremos mais tarde. Portanto, não faço nenhuma diferença entre monges hesicastas e monges não hesicastas. Acho que todos são fundamentalmente hesicastas.

Os primeiros monges, os primeiros ermitãos – posto que, como provavelmente já sabem, o monasticismo nasceu no século IV, com homens e mulheres dos quais Santo Antônio é o mais célebre – foram ao deserto para buscar por Deus. E vemos imediatamente — observem com atenção — que há um objetivo na hesíquia. Esse objetivo é o descobrimento de Deus. Eu diria, inclusive, que é o desejo de encontrar Deus. O hesicasta é um homem de desejo, o seu coração está cheio de desejo de Deus, e, por causa disso, vai buscar um modo de liberar o seu coração das paixões, para encontrar seu Deus. Os primeiros monges partem para o deserto, e isto é significativo. O deserto, como sabemos, é o lugar de retiro, o lugar de silêncio. Opõe-se, de certa forma, à cidade turbulenta. Esta solidão, este isolamento são desejados e vão ser um dos terrenos do hesicasta, do monge, para encontrar Deus. Não podemos encontrar Deus na agitação. Deus mesmo, em certos textos do Antigo Testamento, diz isso. Explica ao profeta Elias: «Ao que Deus lhe disse: Vem cá fora, e põe-te no monte perante o Senhor: E eis que o Senhor passou; e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante do Senhor, porém o Senhor não estava no vento; e depois do vento um terremoto, porém o Senhor não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo, porém o Senhor não estava no fogo; e ainda depois do fogo uma voz mansa e delicada.» (cf. 1 Reis 19, 11-13). Deus não pode ser encontrado mais que no silêncio, e é preciso que o monge hesicasta parta para o deserto ou busque a solidão interior. Se falo do monge, é porque tudo isso veio da tradição monástica, mas é evidente que cada qual pode viver esta tradição hesicasta, se deseja encontrar Deus. Um leigo pode ser um hesicasta e alguns deles foram canonizados e reconhecidos santos pela Igreja.

No começo, o movimento monástico foi essencialmente eremítico e os primeiros monges eram principalmente solitários. Ocorreu, depois, uma evolução bastante rápida, privilegiando a vida em comunidade. Isto se concretizou, sobretudo, com São Basílio, no século IV, com São Teodoro, o Estudia, no século X, entre outros. Eles organizaram o monasticismo e propuseram regras de conduta relativas ao modo de viverem juntos esta busca de Deus. Isto gerou os mosteiros que conhecemos e que continuam esta tradição hoje em dia. Portanto, há duas correntes: a dos eremitas, que se retiram realmente, vivendo na solidão total ou quase total; e a dos que vivem em comunidade. As duas empreendem uma busca idêntica, as duas passam pela tradição da hesíquia, e não somente pelo método. Sou reticente em utilizar o termo “método”, porque devemos ter muito cuidado com isso. A hesíquia não pode ser um método, no sentido «técnico», no sentido que corremos o risco de compreender hoje em dia, e que é ambíguo.

O homem de hoje está como que perdido. Ele procura – porém, todos nós procuramos desde que estamos nesta terra – busca como se achar. Esquece-se, entretanto, de que é dirigindo-se Àquele que o fez, à Deus, ao seu Criador, que poderá encontrar-se. E vive esta busca com uma tremenda agitação, tanta agitação que até quer experimentar qualquer meio para chegar a se encontrar.

A hesíquia não é um método como há um método para aprender inglês, ou como existem todos esses métodos que conduzem necessariamente a um resultado caso sejam bem aplicados. Não, a hesíquia não é esse tipo de coisa. A hesíquia é uma atitude, e não é só porque o monge se retira para o deserto, foge do mundo, e busca o silêncio, que vai encontrar Deus. O método não é mágico. O método é um suporte, mas precisa, como já disse, de uma tensão de amor, de um desejo profundo do encontro com Deus. Então, o método é posto no seu lugar no momento que convém, e o monge procura viver dessa hesíquia. Vai viver no silêncio, num certo retiro, e vai orar. Vai utilizar o que chamamos a «oração do coração» ou também «oração de Jesus». Esta forma de oração está totalmente ligada à tradição hesicasta. Como é esta oração? Repetimos com um rosário, que sempre levamos à mão: «Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, tem piedade de mim pecador». Essa é a fórmula mais completa. Pode ser simplificada, dizendo simplesmente: «Senhor» ou «Jesus».

Os gregos dizem «Kyie eleison», «Senhor, tem piedade». É a mesma fórmula, mais ou menos desenvolvida. Esta oração repetitiva que o monge utiliza não é um meio que, depois de duzentas ou trezentas repetições, possibilita que ele encontre Deus. É, simplesmente, um grito de amor, porque quando se ama, os amantes gostam de manifestar o seu amor. O amor, bem sabemos, passa pela palavra, mas pela palavra mais limpa. Quando um casal se encontra e decide casar-se, o efeito amoroso lhes dá uma possibilidade de encontro que passa pelas palavras. Cada um quer dizer sem cessar ao outro que o ama, mas quando voltamos a encontrar esse casal no final da sua vida, eles já não se dizem nada, eles apenas se olham um ao outro. O simples olhar é suficiente para manifestar esse amor, que se vive no silêncio, na paz, no coração totalmente despojado daquilo que o estorvava no começo, provavelmente por causa da paixão. O monge vive isso, ao seu modo, claro, transpondo esta experiência. É preciso que ele se cale; é preciso que vá até o silêncio e que repita este nome de amor: Jesus. «Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim»: trata-se de uma declaração de amor. Reconhecemos nosso Deus, e Lhe dizemos: «Tem piedade de mim», não numa atitude miserável, na que estaríamos como que “pisoteados” pelo nosso Deus, não se trata disso de jeito nenhum. Simplesmente, reconhecemos, na humildade, que não sabemos amar. Não sabemos amar, mas queremos amar. Por causa disso, dizemos: «Tem piedade de nós. Ajuda-nos a amar». Já que se queremos ser amantes de Deus, pois bem, é preciso que Ele, que nos criou e que é Amor, mostre-nos este Amor, faça-nos partícipes Dele, acolha-nos Nele. Não há outra fonte. Então, o monge hesicasta vai se esforçar ao longo da sua vida para orar ao Cristo, o Cristo que disse: «Orar sem cessar» (Cf. Luc 18,1). Poderíamos responder-lhe: «Mas como, Senhor, se ora sem parar? O que significa este convite perpétuo?»

Não se trata, para o Cristo, de repetir-nos sem parar: «Fala comigo», já que Ele nos advertiu: «E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos.» (Mt 6,7). Já sabemos, nós lhe falamos muito amiúde para lhe pedir, pedir e mais pedir. Em certos momentos, Ele deve colocar algodões nas orelhas dizendo: «Parem, parem de sempre pedir alguma coisa!». Acho que o nosso Deus, quando nos diz que oremos sem cessar, convida-nos a contemplá-lo, a desejá-lo. É isso a oração. Não é obrigatoriamente uma formulação exterior, mas é, principalmente, uma atitude do coração. É preciso desejar o Senhor. É neste desejo que se instala esta oração perpétua. A oração de Jesus, a oração do coração que utilizamos, ajuda-nos a isto, já que é muito limpa. Torna-se, é verdade, um hábito, uma chamada interior à qual é preciso responder.

Quase sempre, quando monges jovens vêm ao meu mosteiro, me dizem: «Bom, ensina-me a orar». Não sabem orar direito. Então, dou-lhes um rosário de oração. Além disso, eles o recebem litúrgicamente, com a tomada do hábito. Eu lhes digo: «Agora, começa esta oração!». Como são monges jovens, cheios de desejo, de energia e de brio, querem uma regra de oração forte, densa, a mais dura possível. Então, deixo que eles façam isso e lhes digo, “está bem”. E depois, quinze dias ou três semanas mais tarde, vêm e chamam à porta da minha cela dizendo: «Não consigo!». Não compreenderam que não é um método. Cansam-se, e isso pode ser inclusive perigoso, ficar repetindo esta invocação obstinadamente. Isto não tem nenhum interesse no plano espiritual e pode representar um perigo, inclusive no plano físico. Não compreendem que é preciso começar muito suavemente, mas tendo uma atitude de desejo de Deus.

De fato, talvez simplesmente seja suficiente dizer o nome de Jesus. Vocês sabem quanta importância, em nossas tradições comuns, tem o nome. Aí está, simplesmente tem que dizer este nome e deslizar para dentro, muito suavemente, sem o desejo de realizar uma proeza. É preciso que a nossa oração seja humilde se quer ser verdadeiramente hesicasta. A humildade é absolutamente indispensável. É muito evidente que nenhum de nós, neste mundo, é perfeitamente humilde. Somos aprendizes do amor e da humildade. E temos de aceitar isso, mas também é preciso lutar para adquirir esta humildade, que nos permite então o verdadeiro encontro com Deus. Buscar a humildade e pedir a humildade a Deus, são outras atitudes indispensáveis para os monges hesicastas.

Gostamos muito de um santo russo do século passado, São Serafim de Sarov, um homem extremamente humilde. Um dia, explicou a alguém que veio vê-lo como viver a hesíquia, como viver esta quietude em Deus. E lhe disse esta frase: «Se tu tens a Paz no teu coração, isto é, se és hesicasta, então salvarás milhares de almas ao teu redor». O que significa esta frase? É preciso compreendê-la. Se São Serafim diz: «Se tu tens a Paz no teu coração, salvarás milhares de almas», é porque ele passou por todo um caminho que é para nós um exemplo. Mostrou-nos através da sua vida que é preciso ser humilde, que temos que aceitar sermos pequenos, não sabermos, não conhecermos Deus, principalmente não o possuirmos, o que seria um erro fundamental. Temos que passar pela humildade e pelo abandono, e São Serafim passou por isso. O que é a humildade, senão o descobrimento objetivo do que nós somos: pobres, pequenos, desamparados, não amantes. Isto pode nos conduzir ao desespero, o qual não é o bom caminho. É preciso que esse descobrimento na humildade nos conduza à paz. E a única via possível é o abandono nas mãos de Deus. Se descubro que sou pobre, não devo me desesperar, nem me rebelar. Não é a melhor solução. Quando me desespero e me rebelo, a quem faço referência? A mim, mas não ao meu Criador! Mas se sei ver a minha fraqueza humildemente, se sei não me rebelar, se sei realmente voltar-me para Deus, na confiança, dizendo-lhe: «Sou pequeno e pobre, mas Tu, Tu podes tudo, toma-me na palma da Tua mão e guia-me!», então este abandono, que é a segunda etapa – humildade, depois abandono – vai me conduzir à quietude, à paz do coração, porque estarei finalmente nas mãos do Único que pode me dar esta paz, Aquele que é o Amor, o nosso Deus. Aqui está, então, pelo exemplo de São Serafim de Sarov, como a tradição hesicasta pode ser vivida.

Gostaria de terminar com um exemplo bíblico, evangélico, que vocês conhecem. Trata-se do episódio no qual Jesus está na casa dos seus amigos Lázaro, Marta e Maria, judeus que amavam o Senhor, a quem acolhiam freqüentemente. Neste episódio, não se fala muito de Lázaro, mas principalmente das irmãs dele, Marta e Maria. Uma delas, Marta, atarefada, prepara a comida, move-se, põe a mesa, enfim, podemos imaginar tudo o que acontece. A outra, Maria, está aos pés do Senhor, olha para Ele, simplesmente, e o escuta. Então, a que põe a mesa diz para Jesus: « Senhor, não se te dá que minha irmã me tenha deixado a servir sozinha? Dize-lhe, pois, que me ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; entretanto poucas são necessárias, ou mesmo uma só; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada. » (Luc, 10, 38-42) Dito de outra forma, nesta passagem evangélica, nesta experiência de Marta e Maria, o Cristo ensina: «Atenção com a agitação inútil!». Não quer dizer que não fosse acolhedora esta agitação. Ele não censura a que prepara a comida, mas simplesmente diz: «Atenção, Maria escolheu a melhor parte!»

Todos nós temos uma Marta e uma Maria dentro de nós. Vamos tentar escolher, nós também, a melhor parte. Amém.

Ighúmeno Simeon
Mosteiro de Saint-Silouane (Saint-Mars-de-Locquenay)
Bokletim Interparoquial, Novembro 2003