“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

ok

sexta-feira, 18 de julho de 2008

"O Essencial da Espiritualidade Ortodoxa"

O fim e os meios da Vida Cristã

O objetivo da vida do homem é a união (Sinergia) com Deus e a deificação (théosis).

Os Padres gregos deram ao termo “deificação” uma conotação mais ampla que aquela conferida pelos Latinos, não no sentido de uma identidade panteísta, porém no sentido de participação na vida divina através da graça. “...Por elas, as maiores e mais preciosas promessas nos foram dadas, afim de que vós vos tornásseis também partícipes da natureza divina...” (2P1,4)

A participação introduz o homem na própria vida íntima das Três Pessoas divinas e o coloca nessa corrente incessante e transbordante de amor que vai do Pai ao Filho e ao Espírito. Nessa corrente que expressa a verdadeira natureza de Deus. Ali encontra-se a verdadeira felicidade do homem. Sua felicidade eterna.

A união com Deus é a realização perfeita do Reino anunciado pelo Evangelho. A realização perfeita dessa caridade e desse amor que resumem a Lei e os Profetas. É quando une-se à vida das Três Pessoas que o homem pode amar a Deus com toda a sua alma, com todo o seu coração, com todo seu espírito e ao próximo como a si mesmo.

A união entre Deus e o homem não pôde ser realizada sem um mediador: O Verbo feito carne, Nosso Senhor Jesus Cristo. “Eu sou o caminho... Ninguém vai ao Pai, a não ser por mim” (Jo 14,6)

No Filho nós nos tornamos filhos. “Nós somos feitos filhos de Deus” disse Santo Atanásio.

Essa incorporação no Cristo é a única maneira de alcançarmos nosso fim sobrenatural. O Espírito Santo opera e aperfeiçoa essa incorporação. Santo Irineu escreveu: “É pelo Espírito que se vai ao Filho e pelo Filho, vai-se ao Pai”.

Nunca poderemos insistir o bastante sobre o fato de que o objeto da espiritualidade cristã é a vida sobrenatural da alma. Ela não é responsável por efeitos naturais normais ou sobrenaturais, obtidos por discípulos humanos, mesmo aqueles “ditos” religiosos. Trata-se aqui da ação de Deus (e não de ações humanas) sobre a alma. A essência da vida espiritual não é psicológica. Ela é ontológica. É por isso que um relato sobre a espiritualidade não consiste em descrever certos estados de alma, sejam eles místicos ou outros, ou a ver como, certos princípios teológicos, definidos podem aplicar-se a cada alma em particular. A ação salvadora de Nosso Senhor é o Alfa e o Ômega, e o centro da espiritualidade cristã.

Graça divina e vontade humana.

A incorporação do homem em Cristo e sua união com Deus requerem a cooperação de duas forças desiguais mas igualmente necessárias: a graça divina e a vontade humana.

A vontade (e não o entendimento ou o sentimento) é o instrumento humano da união com Deus. Não pode haver união íntima com Deus se nossa própria vontade não estiver submetida e conformada à Sua Vontade: “Tu não quiseste nem sacrifício, nem oblação... Vêde, eu venho para fazer, ó Deus, a Tua Vontade” (Hb 10, 5-9).

Nossa fraca vontade permanece impotente se não for informada e sustentada pela graça de Deus. “É pela graça do Senhor Jesus que seremos salvos” (Atos 15,11). Sua graça aperfeiçoa em nós a vontade e a ação.

O Oriente Cristão não precisou suportar as controvérsias que sublevaram no Ocidente as noções de graça e predestinação.

Na Igreja Ortodoxa, a idéia de graça guardou o frescor primaveril que a palavra charis evocava nos gregos. Beleza luminosa... Presente... Complacência... Harmonia.

Os Padres gregos enfatizam a importância do livre-arbítrio na obra da salvação. Contraste chocante com Santo Agostinho. São João Crisóstomo escreveu: “Cabe a nós adentrar o reto caminho e a Deus nos ajudar nessa caminhada. Sua graça não impede nem força nossa liberdade, pois se assim fosse não gozaríamos de nosso livre-arbítrio”. Palavras que poderiam parecer tingidas de um semi-pelagianismo. Todavia, lembremo-nos que os Padres gregos nada tinham a ver com a heresia pelagiana. Ao contrário, combateram fortemente uma gnose fatalista oriental. São João Crisóstomo reconhece plenamente a graça amorosa e a sua necessidade. Ele escreveu: “Por vós mesmos, nada valeis: vós tudo recebestes de Deus. Dele, vós tendes recebido tudo o que possuis; sim, não isso ou aquilo, mas tudo aquilo que tendes. Vós não o deveis aos vossos próprios méritos, mas à graça de Deus. É inútil atribuí-lo à vossa fé, pois é à Sua graça que deveis fazê-lo”. Orígenes já havia dito que a graça reforça a energia da vontade, sem destruir a liberdade. Santo Efrém escreveu sobre a necessidade da ajuda de Deus.

Clemente de Alexandria inventou a palavra “sinergia” (cooperação), para exprimir a ação dessas duas energias combinadas: a graça e a vontade humana. Ainda hoje o termo e a idéia de sinergia resumem a doutrina da Igreja Ortodoxa sobre esse tema.

Ascetismo e Misticismo

A distinção entre a vontade humana e a graça divina, e sua interpretação nos ajudam a compreender como, na vida espiritual, o elemento ascético e o elemento místico podem, ao mesmo tempo, divergir e convergir.

Por ascetismo entende-se, geralmente, um “exercício” da vontade humana sobre ela mesma. Quanto ao termo “misticismo”, é lamentável que seja freqüentemente tão mal utilizado. “Místico” é confundido com “obscuro”, “poético”, “irracional”, etc. Psicólogos incréus (Delacroix, Janet), escritores cristãos (Von Hügel, Evelyn Underhill) permanecem bastante vagos em suas definições de misticismo. Definir o termo como o conhecimento experimental das coisas divinas é apenas uma aproximação. Os mestres da vida espiritual e, após eles, escritores católicos romanos (Garrigou-La-Grange, Guibert, Maritain) tiveram o mérito de precisar um pouco esses termos, dando às palavras “ascético” e “místico” um significado estritamente técnico. A “vida ascética” é uma vida na qual as virtudes dominantes são virtudes “adquiridas”. Por “virtudes adquiridas” entendo as virtudes resultantes de um esforço pessoal, acompanhado apenas pela graça que Deus concede a cada boa vontade. A “vida mística” é uma vida na qual os dons do Espírito Santo sobrepujam os esforços humanos. É uma vida na qual as virtudes “infusas” sobrepujam as virtudes “adquiridas”: a alma torna-se, aqui, mais passiva que ativa.

Tomemos uma comparação bastante básica. Entre a vida ascética (onde prevalece a ação humana) e a vida mística (onde prevalece a ação divina) há a mesma diferença que entre o remo e a vela. O remo representa o esforço ascético, a vela simboliza a passividade mística, que temos que desfraldar para poder gozar do vento divino.

Paralelo que se coloca bem na linha da Teologia dos Padres gregos. Esses nunca nos deram definições técnicas para o ascetismo ou o misticismo. Eles, no entanto, fazem uma distinção muito clara entre o estado onde o homem está “ativo” e aquele onde ele “sofre a ação”. O pseudo Diniz sublinha que o amor divino caminha na direção do êxtase, e faz o homem sair de si próprio, de sua condição normal.

Evitemos, porém, separar de maneira drástica a vida mística da vida ascética. A predominância dos dons não exclui a prática das virtudes adquiridas, assim como a predominância dessas virtudes não exclui os dons. Um desses dois elementos, é claro, será o predominante. A vida espiritual é, em geral, uma síntese entre o “ascético” e o “místico”.

Os carismas e os fenômenos extraordinários que acompanham alguns estados de oração (vozes interiores, visões, os estigmas, permanecem atributo dos ocidentais) fazem parte da via mística. Nem tais fenômenos, nem os carismas constituem a essência desta. Não importa quão grande o seu significado, não passa de um acidente. A via mística consiste na plenitude dos dons do Espírito Santo na alma.

Os carismas de ordem mística não são indispensáveis à salvação. A vida mística não é um sinônimo de perfeição cristã. A perfeição é feita de caridade e de amor. Ela pode ser conseguida por almas que nunca conhecerão nada além da observância simples e amorosa dos mandamentos. A maioria dos Padres gregos, com o seu santo otimismo, parecem favorecer a tese defendida pelos dominicanos e maritanos. Segundo esta tese, as graças místicas, longe de serem um privilégio da elite, são oferecidas a todas as almas de boa vontade. Sua raridade empírica vem do fato de que poucos respondem ao apelo. Elas são o desabrochamento normal, mas não necessário, da autêntica vida cristã. O Rei deseja que todo tomem faça parte no festim messiânico. Nosso Senhor veio para acender uma luz sobre a terra.. Que mais poderia ele querer, senão ver suas chamas acesas, e queimando em cada um de nós.

Oração e Contemplação.

A oração é um instrumento necessário à salvação. Cassiano, que fez eco aos Padres do deserto, distingue três graus ascendentes na oração cristã: súplica (por si), intercessão (pelos outros), ação de graça ou louvor. Esses três graus na oração reproduzem o itinerário completo da vida espiritual. Pouco importa se a oração é verbal ou mental, o essencial é que ela seja feita com amor.

Por outro lado, a contemplação não é necessária à salvação. Mas, de maneira geral, a oração assídua e fervorosa torna-se contemplativa.

Mas o que é a contemplação ? Ela não é sinônimo de especulações intelectuais muito elevadas, nem de uma interiorização extraordinária que pertença apenas a umas poucas e raras almas, previamente escolhidas. De acordo com os “clássicos” da vida espiritual, a contemplação começa pela “oração de simplicidade” ou “oração de olhar simples”. A oração de simplicidade consiste em se colocar na presença de Deus e a permanecer um momento em sua presença, guardando um silêncio interior tão perfeito quanto possível, concentrando-se inteiramente no objeto divino. Devemos nos esforçar para unificar a multiplicidade de pensamentos e sentimentos, para permanecermos calmos, sem palavras ou discursos interiores. A oração de simplicidade é a fronteira da contemplação. Ela é o seu degrau mais elementar. Ela não é difícil. Aquele que possui o hábito de orar, pelo menos um pouco, certamente já fez a experiência desta forma de contemplação, ainda que apenas por alguns instantes. Ela é portadora de frutos maravilhosos. É como uma chuva que cai sobre o jardim da alma. Ela reforça nossos esforços de ordem moral a fim de evitar o pecado e realizar a vontade de Deus.

Os atos de contemplação são benéficos, mas ainda melhor é ainda viver em estado de contemplação. Não pensemos, porém, que vida contemplativa signifique uma vida onde não se faz nada além de contemplar. Se assim o fosse, a vida contemplativa só seria possível no deserto, ou no interior de um claustro - e, no entanto, ela está disponível a todos. A vida contemplativa é simplesmente uma vida orientada para a contemplação. Uma vida ordenada à volta de freqüentes atos de contemplação, que constituem seu apogeu. Se a cada dia você conceder alguns minutos à oração de simplicidade, se você aprender a fazer abstração das pessoas e das coisas de forma a não se deixar agarrar por elas, se em seus pensamentos e em suas leituras você guarda sempre dentro de si a lembrança de Deus, a atenção à Sua presença, você está no caminho da vida contemplativa, mesmo que ainda viva no mundo.

O estado de contemplação é conseguido se os atos de contemplação forem resultado de um esforço pessoal. Ela é infundida se esses atos são produzidos pela graça divina, sem nenhum - ou quase nenhum - esforço humano. A contemplação adquirida releva da vida ascética. A contemplação infundida, da vida mística. Esta última é o ponto culminante da vida contemplativa.

Existe uma correspondência entre a classificação dos graus da contemplação no Ocidente e sua classificação no Oriente. Santa Tereza d’Ávila estabeleceu a classificação dos estados de contemplação que prevalecem no Ocidente. Ela distingüiu 4 aspectos:

1. A oração de concentração calma e silenciosa da alma em Deus, que ainda não exclui toda distração.
2. A união total na qual não há mais distrações. Ela é acompanhada de um sentimento de “união de forças da alma”.
3. A união extática, na qual a alma “sai de si própria”.
4. A união transformadora ou casamento espiritual.

Nos Padres gregos, nós encontramos talvez algo não tão preciso, mas algumas distinções análogas.

A oração de olhar simples, a oração de quietude e a união total são os degraus da “hésychia”, ela mesma - de uma forma ou outra, uma introdução à contemplação oriental. Para além da “hésychia” vem a união extática da qual encontramos exemplos no Novo Testamento. Ela é ainda bem descrita pelos Padres do deserto e pelo pseudo-Dinis (em sua teoria do êxtase e do movimento circular que conduz a alma a Deus). A união transformadora ou o casamento espiritual é descrita por aqueles que concebem a vida espiritual como uma deificação e também por aqueles que insistem na relação nupcial entre a alma e o seu Senhor. Uma transição imperceptível, um encadeamento de tintas e meias-tintas liga esses estados entre si. Eis porque, com os Ortodoxos, o nome de Jesus torna-se não somente o ponto de partida, mas também o suporte e o fim dos estados místicos que vão da “hésychia” à “ekstasis”.

Aquilo que falamos da vida mística pode ser repitido em relação à vida contemplativa. Ela não é um privilégio reservado a algumas poucas almas excepcionais. É verdade que o monaquismo oferece condições especialmente favoráveis ao seu exercício. Ainda assim, a contemplação está aberta a todos. O casamento, a vida familiar ou profissional não excluem de nenhuma maneira, nem a oração, nem as graças místicas. Ao contrário, o contemplativo ou o místico é uma benção para o seu meio-ambiente, que, no entanto, não deixa de lhe causar sofrimentos, deixando de lado os estados místicos mais elevados (como o êxtase e o casamento espiritual), lembremos que os estados hesicastas iniciais (a oração de simplicidade e os estados místicos que a seguem, principalmente a oração de quietude e a oração não extática de união) são o fim normal de toda e qualquer vida orante e cuidadosa, guardar e respeitar os preceitos do Senhor. A contemplação é freqüentemente a melhor maneira de Lhe ser fiel, pois ela faz crescer nosso amor e é o amor que nos auxilia na observância dos mandamentos - e não o contrário.

Não podemos deixar de insistir no fato de que nem a contemplação nem o misticismo devem ser identificados com a perfeição. A perfeição é caridade, amor. Uma vida contemplativa que desenvolve o exercício da caridade, no seu mais elevado grau, culmem caritatis, será igualmente o supremo grau da perfeição, culmen perfectionis. Ela será um fim em si própria e merecerá a oferenda de toda uma vida humana.

Extraído de Introduction a la spiritualité Orthodoxe, por “um monge da Igreja do Oriente”
Ed. Desclée de Brouwer
Bolertim Interparoquial, agosto de 2003