“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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sexta-feira, 4 de julho de 2008

“Extrato das Instruções Espirituais de São Serafim de Sarov a Motovilov”

... Era uma quinta-feira; o dia estava cinzento, o solo coberto de uma espessa camada de neve. Caíam ainda alguns grandes flocos de neve, quando o Staretz Serafim começou a falar-me na clareira vizinha ao seu “deserto”, às margens do rio. Ele fez-me sentar sobre um tronco de árvore, recentemente cortado, e pôs-se, ele próprio diante de mim.

“O Senhor revelou-me, disse-me ele, que em tua infância, desejavas saber o objectivo da vida cristã; tendo posto tal questão, por tantas vezes a eminentes hierarcas”.

Eu devo dizer que em efeito com a idade de doze anos esta questão me preocupava enormemente; eu perguntava frequentemente a este respeito, sem, no entanto, jamais ter recebido uma digna resposta”.

“Ora, ninguém te dizia algo de precioso. Aconselhavam-te a orar, a ir à igreja, a dar esmolas, a fazer o bem, dizendo-te ser este o objectivo da vida cristã. Alguns chegavam mesmo a dizer-te: Não procures saber aquilo que não te compete. Eis que então eu, miserável servidor de Deus, procurarei explicar-te qual é este objectivo: a oração, o jejum, as obras de misericórdia e a caridade..., tudo isto é muito bom, mas representam somente meios, e não o próprio objectivo da vida cristã. O verdadeiro objectivo é a aquisição do Espírito Santo”.

“Em que sentido expressas esta aquisição? – perguntei-lhe então: – Eu não compreendo muito bem!”

“Adquirir significa ganhar, respondeu-me ele, compreendes, o que quer dizer ganhar dinheiro? E então, o mesmo acontece com o Espírito Santo. O objectivo da vida para alguns é o de ganhar dinheiro, de receber honras, títulos, distinções... O Espírito Santo, Ele também, constitui um ganho, mas um ganho eterno. Nosso Senhor compara a nossa vida a um comércio e as obras desta vida à uma compra: “Aconselho que de Mim compres ouro provado no fogo, para que te enriqueças.” (Ap.3, 18) – diz Ele – fazendo-nos ainda o dom das palavras do Apóstolo que diz “Do qual todo o corpo, bem ajustado e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor” (Ef. 5, 16). Os únicos valores da terra são as boas obras feitas por amor a Cristo; elas nos revelam a graça. Nenhuma boa obra pode nos aportar os frutos do Espírito Santo se ela não for realizada por amor a Cristo. Razão pela qual o próprio Senhor faz escrever “Quem comigo não ajunta, espalha” (cf. Mt. 12, 30).

“Na parábola do Evangelho é dito às virgens loucas: “Ide, antes aos que o vendem, e comprai-os para vós” (Mt. 25, 9); mas, no entanto, ao partirem em busca de óleo, a porta da câmara das bodas lhes foi fechada, não podendo mais entrar. Alguns explicam-nos que esta falta de óleo é uma falta de boas obras, mas esta explicação não é verdadeira. Que boas obras poderiam faltar-lhes se, apesar de serem loucas, elas haviam guardado a virgindade? A virgindade é uma das maiores virtudes, um estado que nos torna “semelhante aos anjos” e que poderia reunir todas as virtudes. Apesar de minha indignidade, ouso pensar que o que lhes faltava era a graça do Espírito Santo. Pois o essencial não é fazer o bem pelo bem, mas adquirir o Espírito Santo, fruto de todas as virtudes, sem o qual não há questão de salvação. Escrito está que “é pelo Espírito Santo que toda a alma vive e é elevada pela purificação; ela é amparada pela Trina Unidade num mistério sagrado”. (Anavathmi próprio dos dias festivos – ofício de Matinas)

“Este Espírito Santo, o Todo-Poderoso, nos é dado com a condição de que saibamos adquiri-Lo. Então Ele vem habitar em nós, e prepara em nossas almas e em nossos corpos uma morada para o Pai, segundo a palavra do Profeta: “Dai ouvidos à Minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o Meu Povo; e andai em todo o caminho que Eu vos mandar para que vos vá bem” (Jr. 7, 23).

“Dentre as obras realizadas pelo amor de Cristo é a oração que pode obter mais facilmente a graça do Espírito Santo, pois ela está sempre ao nosso alcance. Pode acontecer que queiras dirigir-te à igreja, não havendo no entanto igreja alguma nas proximidades; ou então desejes socorrer algum pobre mas não disponhas dos meios, ou não encontres nenhum à tua vista; ou mesmo ainda, se gostasses de guardar a castidade, mas a fraqueza de tua natureza impede-te em resistir às tentações. A oração está ao alcance de todos e cada um pode nela vaguear, tanto o rico como o pobre, o sábio como o ignorante, o forte como o fraco, o doente como o são, o pecador como o justo. Imenso é o seu poder; mais do que tudo, ela atrai em nós a graça do Espírito Santo. É-nos necessário, então, orar até que o Espírito venha em nós e não desistir até que enfim Ele digne-Se visitar-nos; até que este divino Consolador já permaneça em nós e conosco”.

“Padre, disse-lhe eu então, falas somente da oração; diga-me algo a respeito das outras boas obras feitas em Nome de Cristo”.

“Sim, respondeu o Padre Serafim. Tu podes adquirir a graça do Espírito Santo por meio de outras boas obras. Põe este capital no “banco do céu” e vê quanto ele vai lhe render. Se a oração e as vigílias te fazem alcançar mais graças divinas, vigie e ore; se são os jejuns, faça penitências; se são as doações, então realize-as. Sabes, amigo de Deus, sou descendente de uma família de comerciantes de Koursk, quando ainda estava no mundo, meu irmão e eu vendíamos sempre os artigos que nos traziam mais benefícios. Faz então, tu próprio, o mesmo, pois que para nós cristãos o senso da vida consiste não em aumentar o número de boas obras, mas sim em tirar delas o maior proveito, quero dizer, o Dom excelente do Espírito Santo”.

“Seja, por tua vez, dispensador desta graça, tendo como exemplo a vela que ilumina e comunica a luz a outras velas, sem, no entanto, apagar a sua própria chama. Se isto acontece ao fogo da terra, o que esperamos então do Fogo do Espírito Santo? Os bens terrestres esvaem-se quando os distribuímos, enquanto que as riquezas da graça divina não cessam de aumentar naqueles que as distribui. Eis porque nosso Senhor diz à Samaritana: “Quem beber desta água ainda terá sede, mas aquele que beber da água que Eu lhe der não terá mais sede; porque a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte que jorra para a Vida Eterna” (Jo. 3, 13-14).

“Padre, disse eu ainda uma vez, falas constantemente da graça do Espírito Santo como sendo o objectivo da vida cristã, mas como e onde poderei eu perceber uma tal graça? As boas obras são visíveis, mas o Espírito Santo, pode Ele ser visto? Como posso saber se Ele está presente em mim ou não?”

“Em nossos tempos, respondeu-me o Staretz, visto a morna condição de nossa fé e a pequena atenção que dirigimos às intervenções de Deus em nossas vidas, nós nos tornamos completamente afastados desta vida em Cristo. Eis porque as palavras da Sagrada Escritura nos são estranhas, como esta, por exemplo: “Adão viu o Senhor que passeava no jardim” (Gn. 3,8) ou ainda aquela que nos é narrada nos Atos dos Apóstolos, onde o Espírito Santo tendo impedido o Apóstolo Paulo de dirigir-se à Bitínia, conduziu-o à Macedônia (cf. At. 16,7). Muitas outras passagens da Escritura nos falam destas manifestações de Deus aos homens. Alguns dizem que estes textos são incompreensíveis ou negam a possibilidade ao homem de ver a Deus com os olhos da carne. Esta incompreensão vem do fato de termos perdido a simplicidade das origens cristãs e, através de nossas próprias “luzes” afundarmo-nos em trevas de ignorância. O que os antigos compreendiam facilmente nos escapa (refiro-me às compreensões das manifestações divinas). Assim é dito de Abraão, e de Jacob, os quais viram a Deus e Lhe dirigiram a palavra; o próprio Jacob lutou com Ele. Moisés contemplou-O igualmente, e todo o povo com ele, naquela coluna de fogo (que era a Graça do Espírito Santo), a qual servia de guia para o povo de Israel no deserto. Deus e a Graça do Espírito Santo não foram vistos em sonhos ou em êxtases, ou simplesmente na imaginação, mas na realidade, em verdade”.

“É porque nos tornamos indiferentes à obra de nossa salvação que não atingimos, como deveríamos, o sentido das palavras de Deus; não buscamos a Sua Graça e nosso orgulho não a deixa estabelecer-se em nossas almas. Não temos, desta forma, a Luz do Senhor; Luz que Ele concede àqueles que O esperam com fervor e sede de justiça”.

“Quando nosso Senhor Jesus Cristo, após Sua Ressurreição, dignou realizar a obra da nossa Salvação, Ele envia aos Apóstolos o Sopro da Vida perdido por Adão e lhes concede a Graça do Espírito. No dia de Pentecostes, Ele os gratifica pela força do Espírito Santo que neles penetra sob a forma de um vento violento com o aspecto de línguas de fogo, preenchendo-os do vigor de Sua Graça”.

“Este mesmo sopro abrasado é recebido pelos fiéis de Cristo no dia do Batismo e selado pelo ritual do crisma nos membros de seus corpos a fim de que eles sejam também receptáculos da graça. Eis porque o sacerdote acompanha a unção do santo óleo com estas palavras: “Pelo Selo do Dom do Espírito Santo!”. Esta graça é tão grande, tão necessária e tão vivificante, que ela não nos será jamais retirada; mesmo aquele que a renega, guardá-la-á até sua morte. Isto é para que compreendas que se nós não tivéssemos pecado após nosso Batismo, permaneceríamos santos, isentos de toda a mancha do corpo e da alma, tal como os justos de Deus. O mal é que ao avançarmos em idade, não avançamos em graça e em sabedoria mas, ao contrário, pela nossa crescente perversidade, nos afastamos da graça do Espírito Santo e tornamo-nos grandes pecadores”.

“Mas, ó maravilha divina, a Sabedoria busca sempre a nossa salvação. Se nestas estâncias o homem escuta Sua voz e decide, por amor, tornar-se vigilante, se ele persevera em boas obras e alcança o verdadeiro arrependimento, então o Espírito Santo age nele e estabelece nele o Reino de Deus. A graça do Espírito Santo dada no momento do Batismo em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo resplandece em nosso coração como uma luz divina, mesmo apesar das quedas e trevas de nossas almas. É ela que exclama ao Pai de misericórdia: “Aba, Pai!”, é ela que reveste a alma com a túnica incorruptível tecida por nós, pelo Espírito Santo”.

“Para melhor esclarecer-te neste assunto, amigo de Deus, devo dizer-te que o Senhor manifesta geralmente a ação desta graça naqueles que Ele santifica e ilumina. Lembra-te de Moisés após seu “encontro” com Deus no Monte Sinai: o povo não podia vê-lo em virtude da luz resplandecente que iluminava o seu rosto, não podendo permanecer diante dele, senão coberto por um véu. Lembra-te também da Transfiguração de nosso Senhor: “Sua Face resplandecia como o sol e Suas vestes tornaram-se alvas e resplandecentes com a luz” e “os discípulos caíram, prostrados por terra, estupefactos”. Quando Moisés e Elias aparecem iluminados por esta luz, é-nos dito que uma nuvem vem cobrir os discípulos com sua sombra afim de atenuar o resplendor da graça divina, que lhes cegava os olhos. E, bom ... é por meio desta Luz inefável que se manifesta a ação da Graça do Espírito Santo a todos aqueles a quem Deus quer revelá-la”.

“Mas como poderei eu saber se me encontro na graça do Espírito Santo?”

“É muito simples, amigo de Deus, respondeu-me o Padre Serafim. Pois tudo é simples para aqueles que adquiriram a inteligência. Nosso mal consiste em não buscarmos mais a sabedoria que vem de Deus. Os apóstolos, eles sabiam se o Espírito de Deus repousava neles ou não, e quando O possuíam, confessavam-no através de suas obras, santas e agradáveis a Deus. Apoiados nesta certeza fundamental, enviavam suas epístolas como sendo a expressão da imutável verdade, necessária a todos os fiéis. Vês então, amigo de Deus: é muito simples!”

Saint Séraphim – l’Ange de Sarov
Par Valentine Zander – Editions Bénédictines 2000
Tradução: Monja Rebeca
Boletim Interparoquial, julho de 2003