“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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segunda-feira, 12 de maio de 2008

"O Verdadeiro Valor do Homem"

Duas noções colocam-se em evidência, depois de uma guerra, talvez mais do que nos anos que a precedem, a noção da grandeza do homem, da sua significância tanto para os homens quanto para Deus; e a noção da solidariedade humana. E estes são dois pontos sobre os quais eu gostaria de dizer poucas palavras. E fazendo isto nós temos que medir quão longe nós ousamos na valorização da significância dos homens, e quão longe nós ousamos ir em nossa solidariedade; isto é, quão grande nossa coragem pode ser ou também quais são seus limites.

Por séculos, como nos parece, dentro da Igreja nós temos tentado fazer nosso Deus tão grande quanto podemos fazendo o homem pequeno. Isto pode ser visto até em trabalhos de arte nos quais o Senhor Jesus Cristo é representado grande e suas criaturas realmente muito pequenas a Seus pés. A intenção era mostrar quão grande Deus era, mas isto resultou na falsa, enganada, quase blásfema visão de que o homem é pequeno, e numa negação desse Deus que trata os homens como se eles não tivessem nenhum valor.

Estas duas reações são igualmente erradas. Uma pertence às pessoas que defendem que os filhos de Deus, os escolhidos de Deus, refere-se a Igreja. Eles fazem isto de tal forma a sê-lo tão pequeno quanto a imagem que eles têm dos homens, é a mesma falta de perspectiva e grandeza em relação as suas pequenas comunidades e as partes que a constituem. A outra atitude nós a encontramos fora da Igreja, entre os agnósticos, os racionalistas e ateus. Nós somos responsáveis por estas duas atitudes e nós seremos responsáveis por ambas tanto na história quanto no dia do Julgamento. Mas esta não é a visão de Deus sobre o homem.
Quando nós buscamos entender o valor que Deus dá pelo homem nós vemos que nós fomos comprados por um preço muito alto, que o valor que Deus dá pelo homem é toda a vida e toda a morte, a trágica morte, de seu Unigênito Filho sobre a Cruz. Isto é o que Deus pensa do homem, do seu amigo, criado por Ele com o propósito de estar em Sua companhia por toda a Eternidade.

Novamente, quando nós abrimos o Evangelho na Parábola do Filho Pródigo, nós vemos este homem que tendo deixado a grandeza de sua filiação, de sua vocação, depois volta para seu pai. No caminho ele prepara a sua confissão. Ele está pronto a admitir que ele pecou contra o céu e contra seu pai. Ele está preparado a reconhecer que ele não é digno de ser chamado de filho. Mas, quando ele encontra seu pai, seu pai só lhe permite fazer metade de sua confissão, reconhecer que ele não é digno, que ele é um pecador, que ele pecou contra o céu e contra ele; mas lhe permitir um lugar no Reino em termos mais baixos daqueles de filiação, “deixe-me ser como um dos seus servos assalariados”, isto Ele não permite. Ele o interrompe no momento que o jovem rapaz reconhece sua indignidade, indigno da primitiva, original e eterna relação para a qual ele foi chamado. Ele pode ser um filho indigno; ele pode ser um filho arrependido; ele pode voltar à casa do pai, mas sempre como seu filho. Ele até pode ser indigno enquanto filho, mas ele jamais poderá tornar-se um assalariado digno.

E esta é a forma pela qual Deus olha para o homem: em termos da filiação oferecida a nós pela Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, implicada tanto no ato da Criação quanto no nosso chamado a tornarmo-nos participantes da natureza divina, a tornarmo-nos filhos por adoção do Unigênito Filho; a tornarmo-nos, nas próprias palavras de Santo Irineu de Lyon, o filho unigênito no Cristo total.

Esta é a nossa vocação. É para isto que somos chamados. E nada menos do que isto é aceitável para o Senhor. Vejam, esta visão do homem é algo que é incompatível com a pequena visão que nós muito freqüentemente adquirimos de falsos ensinamentos: a servil aproximação ao Senhor. Este é o motivo pelo qual o mundo de fora não pode receber nossa mensagem: esta mensagem tornou-se falsa, ninguém que conheça o espírito do homem dentro de si mesmo estará preparado para ser tratado como se ele fosse menos do que ele sabe que é.

O homem é o ponto de encontro entre o crente e o não crente, entre o fiel e o homem que está sem Deus, reintegrados, nós estamos preparados para um encontro e para um único pensamento. Você se lembra da passagem no Livro dos Atos no qual São Paulo nos fala da descoberta em Atenas de um altar dedicado ao deus desconhecido? Não é este deus desconhecido um homem? Nos nossos dias ele parece sê-lo mais do que nunca. Aqueles que repudiaram Deus e rejeitaram Cristo fizeram do homem seu deus, a medida de todas as coisas. E na verdade, convictos, eles estão indo de encontro à imagem falsificada que através dos tempos lhes é oferecida. Eles fizeram do homem o seu deus e eles o colocaram no altar; mas este homem que eles transformaram em seu deus, na verdade, é um ídolo. Ele é um homem bi-dimensional, um prisioneiro das duas dimensões de tempo e espaço.

Este homem, transformado em deus, não é um homem com profundidade. É um homem como nós o vemos na prática, comum, é empírica vida antes de nós descobrirmos que o homem tem uma profundidade.

Ele está dimensionado nestas duas coordenadas, ele tem volume, ele ocupa espaço, ele tem forma; ele é tangível e visível, mas ele não tem conteúdo. De certa forma alguém pode dizer que ele pertence ao mundo da geometria na qual pode-se falar de volumes, mas estes volumes são vazios; não há nada a dizer sobre o que há dentro destes volumes. O homem considerado somente em termos de espaço e tempo, neste sistema bi-dimensional, aparece para nós apenas como uma concha, uma forma exterior. Ele é uma presença e nós nos relacionamos com sua presença. Sua presença pode ser agradável ou desagradável. Não há profundidade para sondar, não há profundidade que nós possamos investigar ou mesmo perceber, porque a profundidade do homem é nada dentro do tempo e do espaço; ela não pode ser encontrada lá.

Quando as Escrituras nos dizem que o coração do homem é profundo elas falam daquela profundidade que escapa à geometria, é uma terceira dimensão, de eternidade e imensidão – aquela dimensão que é própria da dimensão de Deus. Mas quando o homem é colocado no altar para ser venerado, será apenas como um evento histórico desenvolvido no tempo e no espaço, no entanto não há nada a ser venerado nele. Ele pode ser grande; ele pode expandir sua estatura. Ele pode tornar-se um daqueles muito vistosos ídolos das antigas civilizações, mas ele nunca terá grandeza, porque grandeza não reside em tamanho. Somente se o homem tiver esta terceira dimensão, invisível, intangível, a dimensão de profundidade e de conteúdo, esta dimensão do Infinito e da Eternidade, que está mais no homem que o visível, então, mesmo na humilhação, o homem torna-se grande. Mesmo derrotado ele pode ser maior do que aquele que aparentemente o derrotou.

A revelação de Deus em Cristo, ou a dimensão absoluta da eternidade e imensidade em Cristo, está unida com a revelação da derrota e da humilhação.

Para aqueles que, no mundo pagão ou mesmo na tradição Hebraica, pensam em Deus como revestido de toda a imaginável grandiosidade do homem, que vêem em Deus a soma total de todas as suas aspirações, de todos os seus objetivos, aquilo tudo que eles admiram na criatura, a revelação de Deus em Cristo foi um insulto e uma blasfêmia, algo que eles não podiam suportar porque o grande, transcendental e vitorioso Deus que eles imaginavam e que lhes era descrito, por exemplo, com tamanha beleza e poder pelos amigos de Job, aquele Cristo aparece a eles como um Deus indefeso, desprotegido, vulnerável, derrotado e, por conseguinte, desprezível.

Mas, nEle nós achamos a decisiva grandeza porque em tudo isto, nesta aparente derrota, nós vemos a vitória do amor, um amor que investe até as últimas conseqüências, até a última possibilidade, talvez além das possibilidades, se nós pensarmos em nossos termos de referência, mas que permanece invencível e vitorioso. Ninguém, diz Cristo, tira a minha vida de mim. Eu a dou livremente. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida por seus amigos. Aparente derrota, perfeita vitória do amor testado até o último limite.

Este homem, Jesus Cristo, nós também colocamos sobre o altar. Ele é também a medida de todas as coisas para nós. Porque Ele tem uma qualidade muito diferente daquele pobre ídolo ao qual nós somos chamados a adorar, ao qual nós somos chamados a sacrificar, a nós mesmos e aos outros, por um mundo sem Deus. Todavia nós Cristãos podemos encontrar nos infiéis, nós podemos encontrar naqueles que procuram ou naqueles que ainda não procuram, a imagem do homem. Mas para isso nós precisamos estar preparados para afirmar que o homem é maior do que a mais selvagem imaginação do infiel. Nossa consciência do homem é maior que o orgulho daqueles que querem criar um homem tão grande quanto possível no mundo exterior, bidimensional, do qual Deus está excluído. É ainda nesta questão, na visão do homem, que nós podemos encontrar todos aqueles que afirmam que o homem tem o direito de ser grande e de ser venerado, porque nós veneramos um Deus que é homem; nós nos prostramos perante Ele; Ele é nosso Deus.

E agora eu vou ao segundo ponto da nossa meditação. O quão longe nós podemos sentir a total e definitiva solidariedade por aqueles que negam a existência da própria possibilidade desta dimensão de grandeza e profundidade? São Paulo, em seu tempo, referindo-se aos judeus, estava preparado até para ser excluído da presença de Deus, se somente isso tornasse possível para o povo de Deus ser salvo em sua totalidade. Podemos nós ir tão longe, podemos nós juntos com Cristo e não contra Ele, juntos com Deus e não contra Ele, dizer: “deixe nossa vida ser o resgate da vida do mundo”?. E quando eu digo “a vida” não quero dizer a existência temporária, mas todo o destino da humanidade. Podemos nós estar preparados a correr o risco final da solidariedade, a salvação juntos ou mesmo a perdição juntos? Um cristão não pode ter uma atitude com as coisas diferente daquela do próprio Cristo: do Deus revelado em Cristo dentro da história humana, dentro da tragédia e da glória do destino da humanidade. Vamos então lançar um olhar no tipo de solidariedade que Deus, em Cristo, oferece aos homens.

A solidariedade começa no momento da criação quando o Verbo de Deus chama todas as coisas a ser, e quando o homem é chamado, não à uma transitória e efêmera existência, não à uma experiência, ele é chamado a ser, e ser para sempre, o companheiro na eternidade do Deus vivo. Este é o momento quando Deus e o homem acham-se unidos, e se eu posso dizer esta palavra, pelo e no mesmo risco, porque é na criação que Deus toma sobre Ele não somente as conseqüências de ter criado o homem, mas também as conseqüências do que o homem fará do tempo e da eternidade. Em toda as Sagradas Escrituras nós vemos o modo como Deus nunca renuncia da responsabilidade nem da solidariedade para com o homem; como Ele suporta as várias situações que o homem cria, uma após outra; como Ele se ajusta a eles no propósito de prover a nossa salvação, que é a realização final da vocação do homem.

Mas o evento essencial, o ato essencial de solidariedade é a encarnação do Verbo de Deus. Deus torna-se homem. Ele entra na história. Pode-se dizer, Ele adquire um destino temporal; Ele se torna parte e parcela de um desenvolvimento.

Mas quão longe esta solidariedade vai? Habitualmente em nossos sermões nós sublinhamos, e também ouvimos as pessoas dizerem, Ele se torna participante de tudo que era a condição do homem exceto o pecado. E se nós perguntarmos o que são estas coisas das quais Ele torna-se participante, nos dirão que são as limitações do tempo e do espaço e as condições da vida humana, cansaço, fome, sede, sofrimento, isolamento, solidão, ódio, perseguição e no final morte na cruz. Mas quando nós dizemos isto nós contemplamos alguma coisa que é subjacente a tudo isso, algo que a mim parece mais importante que todas estas coisas. Sim, Cristo aceita, no fim de tudo, não somente a vida humana, mas também a morte humana. Mas em que isso implica? Quão longe esta solidariedade vai?

Se você voltar às Escrituras você verá que morte e pecado, isto é morte e separação de Deus, morte e perda de Deus (o que podemos chamar etimologicamente de ateísmo), estão inseparavelmente unidos.

O fato de recusar Deus está na raiz da morte. São Máximo, o Confessor em um dos seus escritos, traz isso à tona da forma mais admirável; falando da Encarnação, ele diz que no próprio momento da concepção de Cristo, mesmo na sua humanidade Cristo era imortal, porque ninguém pode nascer de uma carne humana unida com a Divindade e ser suscetível à morte. E mais, quando nós falamos da crucifixão nós estamos cientes do fato de que a morte de Cristo na Cruz era um impossível rompimento entre uma alma imortal e um corpo imortal; não era o definhar da vida; era um dramático, um impossível evento imposto, pela vontade de Deus, a um que era, igualmente e perfeitamente, ambos, Deus e homem.

Sendo assim as palavras de Cristo sobre a Cruz adquire uma significância que é mais profunda e mais apavorante que qualquer pensamento que possamos fazer delas.

Quando o Senhor diz: “Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?”, é o momento no qual, metafisicamente, de um modo indizível, de um modo que nós não podemos calcular (porque nós não podemos calcular nada no mistério de Cristo), Jesus pregado na Cruz perde a consciência da Sua união com Deus. Ele pode morrer, porque Ele, livre de pecado, torna-se naquele momento totalmente participante da vocação do homem, Ele também é deixado sem Deus, e não tendo Deus Ele morre. Isto é o que significa no Credo Apostólico quando diz: “Ele desceu aos infernos”. Inferno na tradição Hebraica era o lugar onde Deus não estava; Ele foi fundo na ausência de Deus e Ele morreu. Aqui está a medida da divina solidariedade conosco, não somente o derramamento de sangue, não somente a morte na Cruz, mas a própria condição dessa morte na Cruz, dessa morte conjunta com a perda de Deus.

E aqui nós vemos que não há um só ateu no mundo, quer ideológico ou, se podemos colocar dessa forma, gástrico – se você pegar as palavras de São Paulo que alguns fizeram do seu estômago o seu Deus – nenhum ateu nunca foi tão fundo no ateísmo, na perda de Deus, do modo como foi em Cristo, como experimentou e morreu disto – Ele, imortal em Sua humanidade tanto quanto em Sua divindade.

Isto está muito mais além de qualquer outra forma de solidariedade. Isto é a medida cheia do “Amor de Cristo e de Deus pelo homem o qual Deus está preparado a fazer, e a medida de quão longe Ele está preparado a ir em Sua unidade conosco”. Mas quando novamente pensamos no homem, naqueles homens que não são da Igreja, naqueles homens que estão fora dela, que se voltaram contra ela por nossa causa, porque o nome de Deus foi blasfemado entre as nações por nossa causa, então nós podemos ver quão longe nós temos coragem de ir, e quão grande nossa coragem precisa ser.

Nossa solidariedade precisa ser primeiro com Cristo, e Nele, com todos os homens, até o fim, à inteira medida da vida e morte. Somente então, se nós aceitarmos isto, nós podemos, cada um de nós, e a congregação de todo o povo fiel, o povo de Deus, crescendo dentro daquilo que estava em Cristo e dentro daquilo que estava nos Apóstolos, dentro de um grupo de pessoas cuja visão era maior que a visão do mundo, cujo objetivo era maior que o objetivo do mundo, realmente a Igreja no começo podia conter tudo isso, podia ser participante de todas aquelas coisas que são as condições do homem, e, portanto, podia conduzir a humanidade à salvação. Mas este não é o estado no qual nós estamos.

Nós crescemos pouco porque nós transformamos nosso Deus em um ídolo e nós mesmos em escravos. Nós temos que reconquistar o senso de grandeza que Deus revelou em Cristo e a grandeza do homem revelado por Ele. E então o mundo pode começar a acreditar e nós podemos nos tornar cooperadores de Deus para a salvação de todas as coisas. Amém.

Metropolita Anthony de Sourozh
“Sermons and Talks”
http://www.metropolit-anthony.orc.ru/
Traduzido por Sr. Dom Ambrósio, Bispo Ortodoxo do Refife
Igreja Ortodoxa Autocéfala da Polônia
Boletim Interparoquial