“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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quarta-feira, 7 de maio de 2008

"A Beleza como Revelação de Deus e Oferenda do homem"

A Beleza do Culto:

A Liturgia da Igreja Ortodoxa é inteiramente um ícone da liturgia celeste, uma imagem do século futuro. Tudo nela é utilizado a fim de revelar ao coração do homem a beleza do Reino de Deus. Tanto em grego como em hebraico, a mesma palavra significa por vezes o Belo e o Bom.

Para compreender isto, o homem deve adquirir este espírito de infância pelo qual nos convida Cristo, não na ingenuidade ou de forma amaneirada, mas nesta faculdade insubstituível de maravilhamento pela qual Deus deixa-se descobrir no mais profundo de nós mesmos. Somente os corações puros, simples e humildes diante de Deus podem alcançar esta beleza na qual Deus nos mostra a Sua face, no esplendor radiante de Seu amor.

O ensinamento da hinografia, a riqueza dos textos litúrgicos, tal como o conjunto daquilo que podemos chamar de estética litúrgica, não dirigem-se unicamente à razão. Eles falam também diretamente ao coração do homem. Desta forma, a liturgia é feita para englobar o homem, alimenta-lo, ilumina-lo. O fiel que participa à oração da igreja não vem a se concentrar intelectualmente sobre um ensinamento petrificado, mas vem para impregnar-se da beleza da liturgia, deixar-se mergulhar na sua atmosfera, a fim de nutrir-se, alma, coração e também espírito. Repetimos que é necessário estar na liturgia tal como uma criança que saboreia as maravilhas do mundo, o que significa uma atitude pacífica, descontraída, ainda que concentrada.

É por isso que os ofícios geralmente longos não são vividos como uma contradição, mas como uma vida na vida, onde o tempo é suspenso, em um antegozo do reino, necessitando de uma ascese, no esforço de estar em pé e atento.

Na liturgia, a beleza não é somente um ícone da glória de Deus. Ou ainda, ela só é este ícone porque é consagrada a Deus. Por “consagrada”, é necessário compreender literalmente “oferta a Deus como uma oferenda de sacrifício”.
Ao seio da liturgia, o homem é chamado a aportar a Deus tudo aquilo que compõe a sua vida, tudo aquilo que a torna preciosa, em definitivo, tudo aquilo que constitui um dom de Deus e que Lhe é trazido em ação de graças. Ora, o senso do belo é certamente a marca mais profunda da imagem divina no homem. Ao desenvolver a beleza litúrgica em todos os seus aspectos, o homem oferece a Deus não somente os talentos que Deus nele pôs para os realizar, mas também esta faculdade inestimável de poder maravilhar-se diante da beleza modulada pelo homem, para torná-la em ícone do reino.

A Igreja : Local Sagrado

O edifício da igreja tem uma arquitetura que responde às necessidades da celebração segundo o rito da Igreja Ortodoxa. O que diferencia a igreja de todo e qualquer outro lugar, é o altar. É sobre o altar que se realiza o mistério da Eucaristia, o cume de todas as celebrações da Igreja, onde o pão e o vinho tornam-se o Corpo e o Sangue de Cristo. Ele é assimilado no sacramento ao túmulo de Cristo, onde teve lugar a Ressurreição de Seu corpo. O espaço que rodeia o altar, o santuário, é delimitado por uma divisão que suporta ícones, a iconostase. No centro desta divisão abre-se uma porta. Encontramos geralmente o ícone de Cristo à direita, e aquele da Mãe de Deus, à esquerda. Somente os celebrantes franqueiam esta porta. Da mesma forma, somente aqueles que são chamados ao serviço litúrgico entram no santuário. Esta disposição do altar no santuário e da iconostase caracteriza todas as igrejas ortodoxas, (mesmo se o lugar de culto não passe de um lugar improvisado). À esquerda do altar, uma pequena mesa serve à preparação dos santos dons: a protese (proskomídia). Antes do início da celebração, o cálice e a patena (disco sobre o qual vem a repousar a prósfora durante a celebração) são dispostos sobre a mesa da protese. O celebrante enche o cálice de vinho e de água e retira, dispondo-a sobre a patena, a parte central (e especial) da prósfora, (esta parte chamamos de cordeiro o qual será imolado pela remissão dos nossos pecados) que tornar-se-á, pela Epiclesis, o Corpo de Cristo.
No momento do ofertório, durante a celebração da eucaristia, o cálice e a patena (disco) são solenemente levados em procissão à partir da protese até o altar. Os celebrantes saem do santuário por uma porta lateral, vêm ao centro da igreja e em seguida entram no santuário fazendo-os pousar sobre o altar.
À direita do altar encontra-se o diaconicon ou sala de paramentação, onde são arrumados os ornamentos e os objetos litúrgicos.

Fora do santuário, os fiéis, o coro e os chantres permanecem na nave. É na nave que a comunhão é distribuída aos fiéis. É lá também que acontece a maior parte dos sacramentos; à exceção do sacramento da ordenação, que tem lugar no altar, e a unção dos enfermos que pode ser feita na casa do enfermo ou no hospital.

O nartéx é um vestíbulo entre a nave e o exterior onde permanecem os penitentes. Os monges, que são penitentes antes de qualquer coisa, aí dizem os ofícios tipicamente monásticos. Aquando dos ofícios litúrgicos solenes, aí pronunciamos uma grande oração chamada litia, destinada à intercessão pelo mundo, a fim de o preservar das calamidades e das catástrofes anuais.

Ao exterior encontramos enfim um peristilo, um gênero de pátio com uma fonte. Às vezes estas duas partes, o nártex e o peristilo são encontradas somente nas igrejas construídas. Quando um simples local é improvisado em vias de celebração, contentamo-nos, geralmente, com o santuário, a iconostase e a nave.

Em uma igreja construída, a elevação em altura é realizada sempre em harmonia com o plano ao solo, de maneira que as proporções sejam agradáveis ao homem, para que ele possa sentir-se ele próprio, inspirando-lhe, em tudo, um sentimento de elevação de espírito. A harmonia das proporções cria uma impressão de paz e de bem-estar, em quaisquer que sejam as medidas do edifício.É desta forma, que a igreja de Santa Sofia de Constantinopla, um dos mais maravilhosos exemplos da arquitetura litúrgica ortodoxa, mas também uma das maiores basílicas da cristandade, não engendra sensação alguma de desarmonia, ao contrário de muitas catedrais de estilo gótico. A cúpula hemisférica desta basílica reúne o espaço interior, reproduzindo a harmonia do cosmos recapitulada na igreja. Esta cúpula encontra-se na maioria das igrejas ortodoxas, ultrapassando a nave. Um afresco representando Cristo Pantocrator (Todo-Poderoso) que quer dizer “Soberano do Universo” nela é pintado.

A maioria das paredes são também ornadas de afrescos pintados segundo a mesma técnica representativa dos ícones; eles representam as cenas da vida de Cristo e das figuras de santos. O fiel encontra-se, desta forma, “ambientado em uma ordem de testemunhas”. Esta onipresença da santidade e do mistério da obra de Cristo tem a grande vantagem de criar pela sua profusão um clima psicológico particularmente propício à oração e à paz interior. As cores utilizadas nestes afrescos combinam-se ao jogo de luzes particularmente estudado na construção do edifício, as quais contribuem também à criação do ambiente inexplicável da liturgia ortodoxa.

O Ícone: Janela para o Reino

A veneração dos ícones é bem conhecida do grande público à propósito da ortodoxia. O mistério do ícone é de ordem sacramental: o sacramento da presença daquele que é representado. Uma foto de alguém querido para nós traz-nos à memória a sua presença, e fazendo a memória dele, nós nos sentimos próximos, pelo menos sobre o plano afetivo. O ícone isto desenvolve à medida do mistério da liturgia. Pois o ícone não tem por objeto lisonjear nossos sentimentos pela sua beleza, mas nos permite de orar em presença daquele que está representado, seja face à face direta com Cristo, a Mãe de Deus ou dos Santos. Venerado pelos fiéis, incensado pelos celebrantes, levado em procissão, o ícone está integrado à liturgia da igreja. À cada festa litúrgica corresponde um ícone em expressão visual, tal como os cânticos litúrgicos são a expressão verbal.

Fazendo-se carne habitando entre os homens, Deus “saiu” de Sua transcendência a fim de humilhar-Se e tornar-Se assim visível e descritível sob os traços de um homem, a própria pessoa do Filho de Deus. E esta face não é anônima, ela traz um nome, aquele de Jesus, o Salvador e o Senhor do mundo, Deus verdadeiro e homem verdadeiro (símbolo da fé de Nicéia- Constantinopla).

Antes do fato inaudito da Encarnação, nenhuma representação era possível, pois que a revelação de Deus não estava ainda realizada com uma tal clareza, sem uma tal plenitude : a face de Deus não era ainda mostrada. Quem viu o Filho viu o Pai (Jo.14,9), mas também o espírito que repousa sobre Ele. Em efeito, nenhuma representação do Pai e do Espírito é possível. O único ícone da Trindade que é aceite pela ortodoxia é um ícone simbólico: aquele dos três anjos acolhidos por Abraão nos carvalhais de Manre.

O ícone não é o próprio Cristo, mas a Sua imagem, imagem pela qual Ele torna-Se misteriosamente presente. O ícone é um meio, um suporte da oração e um sustento do amor. A veneração que a ele é feita é uma veneração relativa, ela não é dirigida ao objeto em si próprio, mas aquele que nele está representado. No lugar de ser uma realidade fechada em si mesma, tal como seria um ídolo, ele é uma “janela para o reino”, um meio de acesso ao invisível. É por isso que ele reponde a cânones e à uma estética que lhe são próprias. Ao inverso de um retrato ou de uma foto, o ícone descreve de maneira dinâmica um estado que não é deste mundo: aquele da natureza humana transfigurada, tal como ela apareceu aos discípulos aquando da transfiguração de Cristo no Monte Tabor; mas também a todos aqueles que viram Cristo ressuscitado. Nos ícones, qualquer que seja o momento da vida da existência de Cristo ou dos santos representados, a carne já está ressuscitada, iluminada ao interior por uma luz que não é deste mundo. É por esta razão que as formas, a perspectiva, as cores, o sentido da luz e a ausência de sombras no ícone trazem-lhe este aspecto próprio, totalmente estranho e incomum à qualquer arte figurada, que só busca imitar a realidade visível.

O Canto : Louvor de Deus

O canto litúrgico é complementar ao ícone e ocupa um grande espaço na liturgia. O homem é particularmente sensível aquilo que ouve, e a música exerce nele uma influência muito grande, tanto em seu espírito como em seu corpo. A igreja, ao tomar os usos do antigo testamento (os salmos, por exemplo, são antes de tudo, orações cantadas) sempre utilizou o canto em suas celebrações. Ela criou assim um universo sonoro apto a elevar o espírito do homem pacificando-o, para o abrir à contemplação dos mistérios celebrados.

O canto litúrgico responde à exigências precisas, em todos os pontos comparáveis àquelas que governam a iconografia. Ele não visa exprimir sentimentos ou emoções humanas; tal como um ícone ele tem por objetivo abrir o espírito do homem à presença de Deus, fazendo-o esquecer os laços deste mundo para elevar-se ao seu criador. O uso de instrumentos musicais é interditado pela igreja ortodoxa. Somente a voz humana é apta a louvar o Senhor.

O canto cria uma harmonia de sons que se une à harmonia das cores e das formas no seio do edifício litúrgico. O aspecto rítmico é também fortemente importante. O ritmo do canto deve combinar-se aquele da celebração, aos gestos do celebrante, sublinhando os momentos importantes ou criando tempos de transição necessários ao desenvolvimento da liturgia. Este aspecto rítmico é muito importante, pois contribui à criação da atmosfera particular da liturgia. Sensível aos sons e às cores, o homem o é igualmente aos ritmos. O ritmo litúrgico tende, antes de tudo, a pacificar os fiéis, chamando-os a ingressarem neles próprios a fim de participarem o mais profundamente possível à oração comum.

Este sentido de ritmo e de melodia encontram-se, da mesma forma, na leitura dos textos bíblicos, tal como os salmos, a epístola e o evangelho. Estes são lidos segundo uma maneira própria, sem jamais deixar lugar à mínima emoção.

O leitor, tal como o chantre, o celebrante ou o iconógrafo não buscam expressar seus próprios sentimentos. Mas, pelo contrário, abandonam sua individualidade para fazer lugar à inspiração do Espírito, deixando livre curso à palavra de Deus. A leitura deve somente entrar no coração dos fiéis sem que a personalidade do leitor a interfira, da mesma maneira, o iconógrafo deve apagar-se o máximo possível, a fim de representar de uma forma plena a expressão do reino futuro.

Boletim Interparoquial, 2003