“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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domingo, 13 de janeiro de 2008

"Deus precisa do Homem"

Michel Evdokimov, filho do último teólogo Franco-russo Paul Evdokimov, é Arcipreste do Exarcado Russo na Europa Ocidental, sob o omophorion (autoridade eclesiástica) do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla. Fr Michel é professor emérito de literatura na Universidade de Potiers, França, e reitor da paróquia ortodoxa de São Pedro e São Paulo localizada em Châtenay-Malabry, nos arredores do sul de Paris. Ele é autor de numerosos livros sobre a herança teológica russa, bem como sobre temas da espiritualidade ortodoxa. Recentemente, completou uma biografia resumida do Padre Alexander Men, e, atualmente, está sendo preparada uma versão em língua inglesa sobre seu trabalho, iluminador e popular, a cerca da oração: “Ouvrir ton Coeur” (Abrir teu coração).

O texto aqui apresentado foi retirado do seu boletim paroquial de Jan-Abr, 2006, e aborda uma questão de suma importância para o mundo ocidental, no que ele se distancia cada vez mais de seus esteios cristãos tradicionais. (O termo “homme”, em francês, é uma expressão genérica para humanidade, homens e mulheres; sua tradução aqui como “homem” ou “gênero humano” é também para ser compreendida como incluindo homens e mulheres).

É mais freqüente, ou em todo caso mais normal, dizer-se que o homem tem necessidade de Deus. Mas, hoje (nas sociedades ocidentais), o homem do século XXI ainda tem necessidade de Deus? Uma pesada capa de indiferença em relação ao divino, bem como em relação as várias Igrejas, parece carregar pesadamente o espírito humano hoje em dia. Ela nos leva a relembrar a observação de Santo Isaac, o Sírio, que declarou que todos os pecados serão perdoados, exceto o da indiferença em relação ao Cristo ressuscitado. Isto, porque a Ressurreição de Cristo é a própria pedra fundamental de toda a criação: do mundo e da humanidade. A ressurreição é a garantia do amor divino, sem o qual nenhuma forma de vida é possível.

Felizmente, a atual indiferença em relação ao divino não chega ao ponto de obscurecer o verdadeiro sentido da solidariedade que agrega todas as criaturas humanas de Deus. No entanto, temos que nos perguntar se essa indiferença, de fato, não encobre uma difusa ansiedade: não sermos reconhecidos pelo que realmente somos nas profundezas do nosso ser, e que, de fato, na vida, estamos nas garras de um fado que, afinal, conduz à falta de sentido e ao aniquilamento. Mesmo assim, não é possível que, em meio a essa ansiedade, nas trevas que experimentamos atualmente, estejamos ainda assim em busca do que São Paulo chamou de “o deus desconhecido”? O Padre Alexander Men gostava de mencionar que Freud tinha descoberto que todo mundo, mesmo ateístas confessos como ele próprio, estava convencido, nas profundezas de sua mente inconsciente, de que algo continua, sim, depois da morte!

Invertendo a frase costumeira, não podemos também afirmar que Deus tem necessidade do homem, de Sua humana criatura? Um sem número de místicos têm tentado explorar esse paradoxo. Um deles, o místico alemão do século XVII, Angelus Silesius, expressou-o em termos bem audaciosos:


“Sem mim, Deus não pode viver nem um segundo.
Se eu retornar ao nada, Ele ficará despido de seu próprio espírito”.
(The Cherubic Pilgrim / O Querubin Peregrino)


Num tom algo mais leve, um místico judeu expressou a mesma idéia:


“Rabbi Baruch estava procurando um modo de explicar que Deus era um estranho entre os homens, um companheiro no exílio. Um dia, seu neto estava brincando de esconde-esconde com outro menino. Ele se escondeu, mas seu amiguinho recusou-se a procurar por ele e foi para casa. O menino veio correndo para seu avô com os olhos rasos d'água. Os olhos de Rabbi Baruch também encheram-se de lágrimas e ele exclamou: “Deus diz essa mesma coisa: eu me escondo, mas ninguém vem me procurar!”.


Deus precisa de pessoas em contato com a realidade, não daquelas que se escondem numa esfera de religiosidade, consolando-se com ilusões. E Ele também não precisa daqueles que transformam a fé cristã num moralismo ressecado ou nalgum rígido sistema moral. Deus precisa de pessoas que amem a vida. Ele precisa de nossa inteligência para que compreendamos Seus propósitos. Ele precisa de nossas pernas para levar ajuda aos nossos irmãos e irmãs em sofrimento. Ele precisa de nossos lábios para proclamar Sua Palavra. Ele precisa também de nossos corações, de modo que possamos derramar abundante amor, capaz de restaurar a esperança aos nossos vizinhos. E Ele precisa de nossa fé, para que possamos comungar com Ele em celebrações litúrgicas nas quais Ele é “Aquele que oferece e é oferecido”.

Desse modo, podemos dar algo de nós mesmos a essa criação, tal como Deus queria que ela fosse, e a qual Ele Se deu inteiramente ao aceitar nascer de uma Virgem pura num humilde estábulo de Belém. Quando Ele veio à terra como um recém-nascido, envolvido pelo carinho de Seus pais, Ele assim o fez com um propósito fundamental: mostrar o quanto Deus tem necessidade de nós, Suas humanas criaturas.
Boletim Interparoquial, dez 2007