“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

“Os Santos Mistérios – A Vida da Igreja no Espírito Santo”

A Nova Vida
A Igreja é rodeada pelo mundo pecador, privado de luz: todavia, ela é em si uma nova criação, criadora de uma nova vida. E cada um de seus membros é chamado a receber e a criar nele esta nova vida que deveria ser precedida, da parte do futuro membro da Igreja, por uma ruptura com a vida “do mundo”. No entanto, esta ruptura com o “mundo” não significa um afastamento total de toda vida terrestre, de toda co-habitação com o resto da humanidade, geralmente descrente e corrompida: porque então, como escreve o Apóstolo Paulo, vos seria necessário sair do mundo (I Cor. 5,10). Uma fronteira nítida deve ser traçada entre si próprio e o “mundo”, e eis porque, abertamente e com retidão, nos esforçamos em renunciar ao diabo, pois não podemos servir a dois mestres. “Alimpai-vos pois do fermento velho, para que sejais uma nova massa” (I Cor. 5,7).

Em consequência, desde as épocas mais antigas da Cristandade, a entrada na Igreja é precedida por um a “renunciação ao diabo” especial, à qual sucede o Batismo, com a purificação da mancha do pecado. As leituras catequéticas de São Cirilo de Jeusalém nos informam de maneira detalhada a este respeito. Em suas homilias aos catecúmenos, vemos que as “orações de exorcismo”, figuradas na celebração atual do Batismo ortodoxo, bem como a verdadeira “renunciação à Satanás” pronunciada pela pessoa que se apresenta ao Batismo são fundamentalmente muito similares ao Antigo rito cristão. É seguidamente que a entrada no Reino da graça, o renascer “da água e do espírito” é franqueado (Jo. 3, 5-6).

As palavras do Salvador nos ensinam como crescer, em seguida, nesta nova vida: “O Reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente à terra, e dormisse, e se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão cheio na espiga” (Mc. 4, 26-28). Assim, esta nova vida – na medida em que é acolhida interiormente, onde um homem deseja sinceramente permanecer nela, onde, de seu lado, ele se esforça para nela permanecer – age nele com o poder místico do Espírito Santo, ainda que este processo possa lhe parecer insensível.

A vida inteira da Igreja é atravessada pelas ações místicas do Espírito Santo. “A causa de toda preservação repousa no Espírito Santo. Se Ele pensa que é bom soprar sobre um homem, Ele o eleva acima das coisas da terra, o faz crescer e o estabelece no alto” (Antífonas das Matinas Dominicais, sexto tom). Em consequência, cada oração na Igreja, pública ou privada, inicia-se pela invocação do Espírito Santo: "Rei dos Céus, Consolador, Espírito de Verdade, Tu que estás presente em tudo e enches tudo, Tesouro de bem e Doador de Vida, vem e habita em nós. Purifica-nos de toda a impureza e salva as nossas almas, Tu que és Bom”. Assim como a água e o orvalho, caindo sobre a terra vivificam, alimentam e fazem crescer tudo o que é susceptível ao crescimento, desta mesma maneira, os poderes do Espírito Santo agem na Igreja.

Nas Epístolas dos Apóstolos, as ações do Espírito Santo são chamadas grandeza do poder – “excelência do poder” – (II Cor. 4,7) , “divino poder” (II Pe. 1,3), ou “pelo Espírito Santo”. Todavia, mais frequentemente elas são designadas pela palavra “graça”. Aqueles que entram na Igreja, entram no Reino da graça, e são convidados a chegarem com confiança ao trono da graça, para que possam alcançar misericórdia e achar graça, afim de serem ajudados em tempo oportuno (Hb. 4, 16).

A Graça
A palavra “Graça”, nas Escrituras Santas tem vários sentidos. Ela significa em geral a misericórdia de Deus: Deus é o Deus de toda graça (I Pe. 5,10). Aqui, compreendida em um sentido mais amplo, a graça é a benevolência de Deus a respeito dos homens dignos da história da humanidade, e particularmente dos Justos do Antigo Testamento, tais como Abel, Enoque, Noé, Abraão, o Profeta Moisés, e os últimos Profetas.

Em um sentido mais precioso, o conceito de graça se refere ao Novo Testamento onde distinguimos dois sentidos fundamentais deste conceito. Primeiramente, a graça de Deus – a graça de Cristo – significa a inteira economia de nossa salvação, realizada pela vinda do Filho de Deus sobre a terra, pela Sua vida terrestre, Sua morte sobre a Cruz, Sua Ressurreição e Sua Ascensão ao céu: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Ef. 2, 8-9). Em segundo lugar, a graça é o nome aplicado aos dons do Espírito Santo que foram enviados e são enviados à Igreja de Cristo sobre a terra, para santificação de seus membros, para seu crescimento espiritual e para o acesso ao Reino dos Céus.

O Novo Testamento, nesta segunda concepçaão da palavra “graça”, designa uma energia enviada do alto a baixo, a energia de Deus que está na Igreja de Cristo, que dá nascimento, que dá a vida, aperfeiçoa e que gratifica o cristão crente e virtuoso da aquisição da salvação, trazida pelo Senhor Jesus Cristo.

Os Apóstolos em seus escritos conferem geralmente à palavra charis: “graça” – um sentido idêntico à palavra dynamis: “energia ou força agindo (agente)”. O termo “graça” no sentido de “energia” dada do alto para a vida santa aparece várias vezes nas Epístolas dos Apóstolos (II Pe. 1,3;Rom. 5,2; Rom. 16, 20; I Pe. 5, 12; II Pe.3, 18; II Tm. 2,1; I Cor. 16, 23; II Cor. 13, 14; Gl. 6, 18; Ef. 6, 24; e outras passagens). O Apóstolo Paulo escreve: “A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (II Cor. 12, 9).

É importante sublinhar esta distinção entre as duas significações da palavra “graça”, assim como a sua interpretação preponderante nas Escrituras Sagradas do Novo Testamento, enquanto que energia divina, sobretudo porque o ensinamento do Protestantismo, à respeito da graça, concerne unicamente a significação geral da grande tarefa de nossa redenção do pecado pelo prodígio do Salvador sobre a Cruz, depois do qual – como pensam os protestantes – um homem que chega a crer e que recebeu a remissão dos pecados já está salvo. Todavia, os Apóstolos nos ensinam que um cristão, recebendo a justificação pela graça geral da redenção, encontra-se nesta vida como um indivíduo somente “salvo” (I Cor. 1, 18) e tem necessidade do suporte das energias dadas pela graça. “Temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (Rm. 5, 12); “Porque em esperança somos salvos” (Rm. 8, 24).

Como age então a graça salvadora de Deus?

O nascimento espiritual e em seguida o crescimento espiritual têm lugar sob a ação mútua de dois princípios. Um deles é agraça do Espírito Santo; o outro é a abertura do coração do homem para a receber, uma sêde por ela; o desejo de recebê-la, tal como uma terra sedenta e seca recebe a humidade da chuva – em outro termos, um esforço pessoal pela recepção, a preservação e a ação na alma dos dons divinos.

No que concerne a sinergia ou cooperação destes dois princípios, o Apóstolo Pedro diz: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento d’Aquele que nos chamou por sua glória e virtude; pelas quais Ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por ela fiqueis participantes da natureza divina, havendo escpado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo. E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude a ciência. E à ciência temperança, e à temperança paciência, e à paciência piedade. E à piedade amor fraternal; e ao amor fraternal caridade. Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, nada vendo ao longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados”. (II Pe. 1, 3-9). Acerca deste mesmo propósito, nós lemos no Apóstolo Paulo: “E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai. De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade” (Fp. 2, 11-13); quer dizer, vós próprios cooperais, mais recordai-vos que tudo vos é dado pela graça de Deus. “Se o Senhor não constroe a casa das virtudes, em vão nós obramos” (Hino dos degraus das Matinas Dominicais, terceiro tom).

De acordo com o ensinamento sagrado, o Concílio de Cartago, no tercerio século decreta: “Quem quer que disser que a graça de Deus, pela qual o homem é justificado pelo nosso Senhor Jesus Cristo, só serve à remissão dos pecados passados, e não a prevenir de cometer os futuros, que ele seja anátema, porque a graça de Cristo, não somente dá o conhecimento do nosso dever, como também nos inspira o desejo de poder realizar o que nós sabemos” (Cânones 125, e também 126 e 127).

A experiência dos ascetas ortodoxos inspira-nos a alertar os cristãos, de toda a sua energia, ao humilde reconhecimento de sua própria enfermidade, afim de que a graça salvadora de Deus possa agir. A este propósito, as expressões de São Simeão o Novo Teólogo (X século) são muito significativas: “Se o pensamento vos advêm, instigado pelo diabo, de que a vossa salvação é realizada, não pelo poder de vosso Deus, mas antes pela vossa própria sabedoria e pelo vosso próprio poder; e se a vossa alma esboça um tal pensamento, a graça a deixa. A luta contra esta batalha tão poderosa e tão árdua que se ergue na alma deve ser levada até o nosso último suspiro”. A alma deve, juntamente como o abençoado Apóstolo Paulo, clamar em plena voz, à atenção dos Anjos e dos homens: “Não sou eu, mas a graça de Deus que está em mim”. “Os Apóstolos e os Profetas, os Mártires e os Hierarcas, os santos Monges e os Justos, todos confessarm esta graça ao Espírito Santo, e pelo amor de tal confissão e com o seu auxílio, eles lutaram valentemente completando seus caminhos” (Homilias de São Simeão o Novo Teólogo, Homilia 4).

Aquele que traz o nome de cristão (nós o lemos no mesmo Santo Padre), “se ele não traz em seu coração a convicção de que a graça de Deus, dada pela fé, é a misericórdia de Deus... se ele não se esforça em receber a graça de Deus, inicialmente pelo Batismo, ou se a tendo possuido e ela o tenha deixado em virtude de seus pecados, ele não se esforça em fazê-la voltar pelo arrependimento, a confissão, e uma vida contrita; e se pela esmola, as vigílias, as orações e todo o resto, ele pensa que realiza gloriosas virtudes e boas ações, válidas nelas próprias, - então ele obra e se desgasta em vão” (Homilia 2).

Qual é então, o sentido da luta ascética? É um a arma contra “a concupiscência da carne, e a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida” (Jo. 2, 15-16). É o decifrar do terreno da alma, o afastar de suas pedras, o arrancar de suas ervas daninas, a secura de seus mangues, afim de preparar as sementes sagradas que serão ceifadas do alto pela graça de Deus.

A Providência de Deus e a Graça
Do que vem a ser exposto, nos decorre a existência de uma diferença entre os conceitos da Providência Divina e a graça. A Providência é o que chamamos de poder de Deus no mundo, que suporta a existência do mundo, sua vida, nela compreendendo a existência e a vida da humanidade e de cada homem; enquanto que a graça é a energia ou a força que age do Espírito Santo, a qual penetra o ser interior do homem, e o conduz à perfeição espiritual e à salvação.