“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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quinta-feira, 1 de novembro de 2007

"Do Silêncio à Calma"

Parece haver um instransponível vão entre a riqueza da tradição Ortodoxa a respeito da “oração do coração” e a pobre oração que é parte da nossa experiência pessoal. A oração do coração requer “hesicasmo”, um profundo mergulho na calma que nos permite ouvir “a silenciosa pequena voz de Deus”. Isto está realmente dentro do nosso alcance hoje, dadas as condições de “stress”, trabalho excessivo e dispersão que marcam tanto a nossa vida diária?

A maioria dos ensinamentos do hesicasmo tradicional foi formulada por antigos ascetas e transmitida aos monges mais novos. É uma tradição desenvolvida nos mosteiros e almejada principalmente na vida monástica. Suas raízes, no entanto, remontam ao Novo Testamento e aos próprios ensinamentos e experiência de Jesus.

Freqüentemente os Evangelhos mostram Jesus distanciando-se por um momento a fim de orar ao Seu Pai em secreto. Então a Sua oração se junta às dos outros, pessoas que suplicam a Ele ou a Deus Pai por misericórdia e perdão. “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” grita o mendigo cego Bartimeu (Mc.10:47). Na parábola de Jesus do Publicano e do Fariseu (Lc.18:9 e seguintes), o publicano ou coletor de impostos grita do fundo da sua miséria, “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!” Gradualmente, apelos como esse vão dando origem à fórmula familiar da Oração de Jesus, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Vivo, tem piedade de mim, pecador”.

Durante toda história, e talvez especialmente em nossos próprios dias, esta oração ou alguma variação dela tem servido como base de oração e adoração dos leigos bem como dos monges. Hesicasmo, em outras palavras, não é o produto de uma controvérsia medieval entre os monges Atonitas e os teólogos Latinos, como alguns têm argumentado. Ele é uma antiga tradição ainda viva que qualquer um, com uma apropriada orientação espiritual, pode aspirar internalizar e experimentar como um dos principais meios de criar e manter uma profunda, pessoal e inteira comunhão com Deus.

“Deixe que a lembrança de Jesus (isto é, a Oração de Jesus) esteja presente em cada respiração”, São João do Sinai recomenda aos seus monges, “então vocês saberão o valor da solidão”. São Hesychios o Presbítero, recordando estas palavras de São João, acrescenta, “Açoitem o inimigo com o nome de Jesus e, como um certo homem sábio disse, deixem o nome de Jesus aderir à sua respiração, e então vocês conhecerão as bênçãos do silêncio”.

Estas bênçãos foram admiravelmente descritas por Nikitas Stithatos em seu tratado intitulado “Sobre a Íntima Natureza das Coisas”.

O silêncio é um estado inalterado do intelecto, a calma de uma alma livre e alegre, a tranqüila resoluta estabilidade do coração em Deus, a contemplação da luz, o conhecimento dos mistérios de Deus, a consciência da sabedoria por uma virtuosa e pura mente, o abismo da divina intelecção, o êxtase do intelecto, a comunicação com Deus, e a incansável vigilância, oração espiritual, imperturbado repouso no meio de um grande sofrimento e, finalmente, solidariedade e união com Deus.

Aonde estes vislumbres da tradição hesicasta nos levam? É realmente possível para nós hoje, como monges, clérigos ou leigos, adquirir o dom da oração contínua, fazer soar fundo e escalar o cume da “oração pura”?

Se nós considerarmos as vidas dos santos como São Silouane do Monte Athos, ou Padre Arseny (Streltzov) do gulag Soviético, ou o incontável número de homens e mulheres leigos que fazem pelo menos ocasional uso da Oração de Jesus, a resposta pode unicamente ser que em um certo grau (que somente Deus determina) a possibilidade existe, pelo menos para aqueles que procuram isso fervorosamente e com um profundo desejo.

Na sua forma mais pura, certamente, ela não é acessível a todo mundo. Nós sabemos muito bem que muitos santos trabalharam e oraram por anos sem nunca terem se beneficiado do dom da oração que se enraíza no fundo do coração. E somente muito poucos alguma vez conheceram a graça e a inefável alegria da “oração pura”, na qual o próprio “nous” (o intelecto espiritual) transcendeu e a alma habitou com jubiloso êxtase na perfeita comunhão com Deus.

“Aquele que não se transcendeu”, São Máximo o Confessor afirma, “e não tem transcendido tudo que é de qualquer forma sujeito à intelecção, e não tem permanecido no silêncio além da intelecção, não pode ser inteiramente livre de mudança”, isto é, não pode gozar a perfeita e infinita calma em bem-aventurada união com Deus.

Intelecção, a faculdade do “nous” que permite apreender as realidades espirituais diretamente, precisa ser ela mesma ultrapassada. Onde isto ocorre, aí a pessoa vem experimentar “o som do absoluto silêncio”, o “silêncio além da intelecção” que possibilita ao ser inteiro ser preenchido com aquele perfeito amor divino que é a verdadeira existência e vida do Deus triúnico.

Para aqueles de nós que nunca atingirão estas alturas, ainda há abundante esperança e uma abundante promessa. Qualquer um de nós, se nós desejamos isso suficientemente e orarmos por isso sem cessar, pode adquirir alguma medida do dom do silêncio que nos leva à calma. E com este dom nós adquirimos ouvidos para ouvir a voz de Deus que fala a nós no silêncio do nosso coração.
Rev. John Breck
“Boletim Interparoquial”, maio de 2005