“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

"O MISTÉRIO DA SALVAÇÃO", São Máximo o Confessor

TRATADO DO MAL
Dando as definições que se seguirão, S. Maximo permanece na linha do pensamento patrístico clássico. Ele aproveita, contudo, a ocasião para expor uma de suas idéias mestras: as paixões, fruto da primeira transgressão da vontade divina, rebaixaram o homem ao nível de animal. A dialética entre a paixão do prazer e aquela da dor determina a condição mesma do ser humano e de seu futuro e o conduz à morte, visto que o homem perde todo o contato com seu Criador. Nesta perspectiva psicológica e existencial, o mal não é mais uma noção abstrata; ele é, ao contrário, tudo aquilo que há de trágico e de corrompido na natureza humana: a ignorância do Criador e o apego animal aos objetos sensíveis que impulsionam o homem a adorar a criação. Esta constatação nos faz perceber as duas dimensões que comporta a natureza humana: uma, espiritual, leva o homem ao conhecimento de Deus e à união com Ele; outra, corporal, o impulsiona para as criaturas sensíveis e o submete à sua servidão sob as formas variadas das paixões múltiplas. É apenas em conseqüência da libertação desses males e da via direta para a salvação que, de uma parte, na denúncia absoluta dos vínculos da alma com o corpo e com o mundo aqui de baixo, de outra parte, no amor verdadeiro e consciente por Deus. Dizendo de outra forma, é necessário abolir o amor por si mesmo que se exerce na adoração da criação e manifestar a adoração unicamente a Deus pela prática das virtudes. Um tal conhecimento ativo de Deus nos introduz no seu amor e na união com Ele, operada pela graça.

DEFINIÇÃO DO MAL
O Mal não tem existência própria e não a terá jamais. Ele não tem, de modo algum, nem essência, nem natureza, nem hipóstase, nem faculdade, nem ação, como os outros seres criados. Ele não é nem qualidade, nem quantidade, nem relação, nem lugar, nem tempo, nem posição, nem ação, nem movimento, nem hábito, nem paixão, e não pode ser observado como tal na natureza de nenhum ser. Ainda mais, ele não tem ligação natural estrita com os seres. Ele não é nem começo, nem meio, nem fim. Definindo-o, poderíamos dizer que o Mal é apenas a ausência de ação das faculdades colocadas na natureza dos seres com a finalidade de as impelir para seu objetivo. Ou ainda, o Mal é um movimento irrefletido das faculdades naturais que as conduziu, por falsos julgamentos, a outra coisa que não seu verdadeiro objetivo. Compreendo por “objetivo”, o Autor de toda criatura para o qual tendem, por sua própria natureza, todos os seres. Isto era verdadeiro antes que o diabo levasse o homem a ignorar seu Criador empurrando-o para as criaturas; e isto, por um ciúme dissimulado sob uma aparente benevolência.

Ao primeiro homem, por ter feito mau uso de suas faculdades naturais, que deviam conduzi-lo a seu termo, aconteceu ignorar seu Criador. Ele tomou, assim, por Deus – seguindo o conselho da serpente – o que Deus lhe ordenou considerar como seu inimigo. Tornando-se desobediente e ignorando Deus, o homem misturou, até as confundir, suas faculdades intelectuais e seus sentidos e foi atraído pelo conhecimento das coisas sensíveis, conhecimento complexo e desastroso, visto que lhe desdobrava as paixões. Ele pôde, assim, ser comparado aos animais sem inteligência e se lhes assemelhou. De fato, agia, pensava e decidia como os animais. Tornou-se, mesmo, pior que os animais, pois trocou aquilo que era natural nele, por aquilo que é contra a natureza. Ora, quanto mais o homem se dirigia para as coisas sensíveis, por meio, apenas, dos sentidos, mais a ignorância de Deus o acabrunhava; quanto mais era aprisionado pela ignorância de Deus, mais se entregava ao gozo das coisas materiais conhecidas pela experiência; quanto mais se impregnava desse gozo, mais excitava o amor por si mesmo, sua conseqüência; quanto mais cultivava o amor por si mesmo, mais inventava múltiplos meios de obter o prazer, fruto e finalidade do amor por si mesmo. Mas, como o prazer desaparecia com os meios que o produzem e, como à experiência do prazer sucede, sempre, o sofrimento, o homem se dirigia tanto mais violentamente para o gozo quanto mais ensaiava evitar o sofrimento. Por esta tática, ele pensava poder separar um do outro e guardar para si só o prazer, junto com seu amor por si mesmo e estranho a todo sofrimento. Mas era impossível. Na sua paixão, o homem parecia esquecer que o prazer não pode jamais existir sem a dor. De fato, os sofrimentos físicos da dor estão incluídos no gozo, mesmo quando, sob influência do prazer, os homens não se dão conta disso; pois está na natureza das coisas que o mais forte leva a melhor sobre o mais fraco que está caído.É assim que a imensa e inumerável loucura das paixões invadiu a vida dos homens. Sua vida tornou-se, assim, deplorável. Pois os homens honram a causa mesma do aniquilamento de sua existência e perseguem, sem o saber, a causa de sua corrupção. A unidade da natureza humana se desmorona em mil pedaços e os homens, como feras, devoram sua própria natureza. De fato, procurando obter o prazer e evitar o sofrimento, impulsionado pelo amor por si mesmo, o homem inventa formas múltiplas e inumeráveis de paixões corruptoras. Por exemplo, se pelo prazer, se cultiva o amor por si mesmo, suscita-se, em si mesmo, a gulodice, o orgulho, a vaidade, a presunção, a avareza, a avidez, a tirania, a arrogância, a ostentação, a crueldade, o furor, o sentimento de superioridade, a teimosia, o desprezo pelos outros, a injúria, a impiedade, a permissividade nos costumes, a prodigalidade, o desregramento, a frivolidade, a bazófia, a indolência, o insulto, o ultraje, a prolixidade, a tagarelice, a obscenidade, e todo outro vício desse gênero. Mas, se o amor por si mesmo é ferido pelo sofrimento, faz nascer a cólera, a inveja, o ódio, a hostilidade, o rancor, o ultraje, a maledicência, a calúnia, a tristeza, o desespero, a angústia, a falsa acusação da providência divina, a indiferença, a negligência, o desânimo, o abatimento, a pusilâminidade, a lamentação, a melancolia, a amargura, o ciúme, e todos os outros vícios provenientes da privação do prazer. A mistura sofrimento-gozo, que engendra a malevolência e a maldade faz nascer em nós a hipocrisia, a ironia, a astúcia, a dissimulação, a adulação, a complacência, e os outros vícios nascidos dessa mistura.

“Boletim Interparoquial” abril de 2003
Textos traduzidos e apresentados por Astérios ARGYRIOU
Les Éditions du Soleil Levant, Namur, Belgique, 1964