“A Ortodoxia manifesta-se, não dá prova de si”

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

“A Imagem do Invisível”


A Teologia da Beleza:
Ao interior das Igrejas Ortodoxas, em qualquer parte do mundo onde ela esteja, existe algo que ao primeiro olhar chama a atenção. São os ícones. Um elemento fundamental e expressão da vida espiritual da Igreja. Associado com a arquitetura, os afrescos, os mosaicos, os cânticos, as leituras, as incensações e os movimentos rituais, o ícone tem uma função que por um lado é didática e pedagógica, e por outro, profundamente sacramental. Ele é parte integrante e necessária nos rituais e celebrações da Igreja Ortodoxa.

Se numa primeira dimensão o ícone tem o papel, através das cores formas e luzes, de proclamar e transmitir, tal qual as Sagradas Escrituras e os hinos litúrgicos, os Mistérios revelados por Deus aos homens, em outra dimensão, mais profunda, ele é uma perfeita expressão da fé e da vida espiritual da Igreja. E apesar de sua beleza ele não é feito para o mero embelezamento, o ícone é arte sagrada, na verdade, uma perfeita presença espiritual. A sua beleza, a sua luz vem de algo não natural. O ícone não tem o propósito de ser um retrato naturalista de um episódio ou alguém. A idéia que preside o trabalho do iconógrafo – e é por isso que esta palavra significa: aquele que escreve o ícone - é o de proclamar o Plano de Deus, a economia divina da Salvação, a graça santificante que está presente no Santo ou momento da história sagrada que o ícone descreve.

Portanto, considerando estas duas dimensões, o ícone é teologia em toda sua profundidade. E nunca, mesmo quando pendurado na parede da casa de um fiel, o ícone poderá estar desvinculado da Tradição Apostólica, dos Santos Padres, dos Dogmas de fé e das fórmulas sacramentais da Igreja. Não separado deste conjunto todo, ele permanecerá perfeitamente sacral e litúrgico. O ícone, de fato, convida o fiel ortodoxo a uma realidade que está para além deste mundo, uma realidade espiritual, convida-o à santidade. Por isso o ícone é chamado de “janela aberta para o céu” ou “lugar de encontro”. Como diz um Excelente mestre da iconografia: “Deus Se abaixa e Se revela ao homem; o homem responde a Deus se elevando, concordando sua vida com a revelação recebida. Na imagem ele recebe a revelação e pela imagem ele responde a esta revelação na medida em que nela participa” (Leonide Uspenskij – La theologie de l’ ícone dans l’ Eglise orthodoxe, Éditions. Du Cerf, 1982, Paris, pg. 174).

Uma Arte Sacra Milenar:
A palavra ícone deriva do termo grego “eikón” que significa de modo geral imagem e poderia ser usada também em relação aos mosaicos e aos afrescos. Mas comumente é usada para as pinturas feitas em madeira com uma complexa técnica, mais que milenar.

O ícone encontra o seu apogeu no Império Bizantino. Mas ao contrário do que alguns intelectuais e críticos de arte dizem não é a expressão artística de uma época, ele é mais do que isso. O ícone é sempre presente e atual porque, na verdade, transcende qualquer expressão meramente cultural e é atemporal porque fala de uma realidade que está fora do tempo.

Antes da iconografia encontrar o seu amadurecimento artístico como hoje a conhecemos, e isso vai acontecer por volta do século IV, os cristãos dos primeiros tempos já utilizavam alguns tipos de trabalhos pictóricos para expressar a sua fé. Estamos falando das rudimentares pinturas de retratos nas catacumbas, os desenhos de cruzes, de palmas ou ainda as representações de peixe, de cordeiro ou do bom-pastor para simbolizar o Cristo.

Em termos de desenvolvimento artístico o ícone é uma síntese das artes grega, romana, síria, palestina, egípcia e persa. Pouco a pouco com uma idéia mais ou menos comum de se identificarem e se afirmarem enquanto cristãos esses diferentes povos foram contribuindo com sua cultura local para a elaboração de uma arte na qual vieram todos, mais tarde, a se reconhecer.

Quando o Imperador Constantino liberta o cristianismo das amarras de uma religião perseguida e funda a capital do Império na cidade de Constantinopla. Há uma espécie de explosão: Muitos aderem abertamente a “nova” religião do Império, principalmente funcionários do Estado e pessoas das classes mais abastadas. Todos querem fazer parte deste movimento e colaboram com tudo o que podem. Arquitetos, pintores e artistas serão estimulados a contribuírem com sua arte. As igrejas, as catedrais, os monumentos são construídos com toda majestosidade para expressar o fulgor desta fé, já então três vezes centenária. O ícone terá um lugar de honra neste triunfo e terá a sua técnica e regras definitivamente fixadas.

Uma História Sagrada:
Mas é quase certo que, na altura desta narrativa, haverá aquele que pergunte: Mas Deus não proibiu se fazer imagens de adoração, como consta em (Ex. 20, 4), (Lv 26, 1), (Dt. 4 16, 23; 5, 8; 9, 12; 27, 15). Verdade, e este argumento vai ser usado, mais tarde também pelos hereges iconoclastas (Aquele que destrói imagem) dos séculos VII e IX. É certo que esta ordem é um preceito escripturístico. Mas é bom lembrar que o Senhor também mandou construir uma Arca e sobre ela esculpir dois Querubins de ouro (Ex. 25, 18-22). Os cristãos ortodoxos consideram esta segunda ordem como uma prefiguração do mistério que só será revelado mais tarde, o Mistério da Encarnação.

A proibição é parte da pedagogia divina para um povo ainda inseguro na fé, ao qual Deus quer ensinar o culto monoteísta ao Deus Único e Verdadeiro. Este Deus não tem forma nem aparência, Ele é Puro-espírito. O povo da Antiga Aliança. precisava de uma Lei que os corrigisse da idolatria. Corria-se o risco, naqueles tempos, de se fazer uma imagem qualquer deste Deus Puro-espírito e se trocar o significado pelo significante.

Mas na Nova aliança, com um povo já amadurecido no culto ao Deus Único, Deus revela-Se, mostra-Se, toma forma na nossa natureza carnal. Mas continua sendo o Deus Puro-espírito. Esta é a realidade primeira do ícone a Encarnação. Por isso um grande teólogo ortodoxo afirma: “...depois da Encarnação, Cristo liberta os homens da idolatria, suprimindo cada imagem não negativamente, mas de modo positivo, revelando a verdadeira figura humana de Deus” (Pavle Evdokimov – La conoscenza de Dio secondo la tradizione orientale, Roma, 1983, pg. 124). Ou seja com traços, cores e luzes do mundo da natureza mostra-se uma realidade que está para além do natural.

E atenção, não se trata de culto de adoração ao ícone. Este culto de Doxa é exclusivo a Deus. A relação com o ícone é de veneração, venera-se os ícones, tem-se um enorme respeito pelos ícones porque sabemos que eles revelam a graça e o amor de Deus presentes na pessoa do Cristo, da Santíssima Virgem e dos Santos que foram amigos do Cristo porque colocaram em prática a Sua vontade. Como todo cristão deveria também fazer. Isso também serve a todos como um alerta. E para o cristão isso é tão importante que no primeiro domingo da Grande Quaresma, a que nos prepara para a Festa da Páscoa, onde se comemora a Ressurreição de Cristo e a vitória da carne sobre a morte, celebrasse o Domingo da Ortodoxia. Para rememorar o Concílio que restabeleceu culto das imagens e da verdadeira fé.

Além de tudo isto a arte da iconografia, acredita-se, também é a realização da expressa vontade de Deus.

Uma Tradição da Igreja diz que o rei Abgar da cidade de Edessa, que estava doente com lepra, teve um sonho no qual ele via Nosso Senhor sendo perseguido, aprisionado e martirizado. Então ele envia um emissário em busca deste que ele considerava um grande Profeta visto em seu sonho. Quando o emissário do rei, depois de muito procurar, afinal encontra com Jesus Lhe diz: “o meu rei pede que o Senhor venha comigo pois em nosso país o Senhor estará protegido, o meu rei não deixará que nada Lhe aconteça”. Jesus responde: que agradecia mas não podia aceitar, afinal Ele veio para os Seus e além disso era preciso que Ele cumprisse a Vontade do Pai. O emissário replica que o seu rei era muito rigoroso e portanto ele não poderia voltar de mãos vazias. Então Nosso Senhor Lhe pede um lenço que ele trazia e com este lenço enxuga o rosto, dobra-o e devolve ao emissário pedindo que ele o entregasse ao rei, o emissário assim faz. Quando o rei recebe o lenço desdobra-o e ao interior do lenço vê impresso a imagem da Santa Face e fica curado de sua doença.

Esta imagem é chamada pelos ortodoxos de “Aquiropita” (não pintado por mãos humanas). Esta imagem ficou na cidade de Edessa até o ano 944, quando então o Imperador de Bizâncio manda buscá-la, para com ela fazer uma procissão em volta das muralhas da cidade, a fim de protegê-la do ataque dos turcos e este expediente realmente teve sucesso. Até hoje no dia 16/ 29 de agosto celebra-se a Festa da transladação de Edessa para Constantinopla do ícone Aquiropita.

Uma outra Tradição diz que o Evangelista São Lucas teve uma visão na qual a Santíssima Virgem Maria lhe aparece pedindo que ele pintasse uma imagem em sua memória. Nesta visão ela mostra a ele, claramente, como realizar todas as etapas do trabalho. Ele então, seguindo as instruções, pinta o Ícone que mais tarde recebeu o nome de Odighítria (a que indica o caminho), também pintou um segundo que será chamado de Eleúsa (Ternura) e ainda um terceiro ícone. A Santíssima Virgem os viu aprovou-os e Abençoou-os, conferindo às tais pinturas sua graça e poder espiritual. Esta é a origem dos cânones referentes a composição dos ícones. Acredita-se que ao se escrever um ícone, se todas as regras forem respeitadas, este poder espiritual derramado pela Mãe de Deus será retransmitido para o novo trabalho.

Um Sacro-Ofício:
Para que o trabalho chegue a um bom termo é necessário que o iconógrafo jejue, abstendo-se de relações sexuais e de todo alimento de origem animal, ore com fervor, estude a história do Santo ou das passagens relativas ao tema da Festa que ele vai pintar, que tenha se confessado e comungado recentemente, e principalmente que o seu interior esteja em silêncio e paz.

É preciso encontrar uma madeira nobre que não dê bicho, não apodreça, nem empene. Lixa-se e aplica-se uma camada de gelatina incolor, deixando-a descansar por 12 horas. Depois se aplica uma gaze bem fina embebida em cola de coelho (cola de madeira) deixa-se descansar por 12h. Em seguida aplica-se, com um pincel, uma mistura de água, gelatina e gesso cré, deixa-se descansar 12h. Este processo é repetido várias vezes até a gaze ser inteiramente recoberta. Esta cobertura branca é lixada e depois se aplica mais algumas camadas desta mistura de gesso cré, sempre deixando descansar por 12h entre cada aplicação. Lixa-se novamente e depois mais uma vez com uma lixa mais fina que houver, até que a prancha fique completamente lisa, não tenha nenhuma imperfeição e adquira uma aparência de porcelana. Ela então estará pronta para receber o desenho.

É preciso se estudar o original do modelo que se quer pintar. Descobrir as formas geométricas, retângulos, quadrados, círculos, triângulos e etc, ocultas no desenho. Passar estes traços para a prancha onde se pintará, severamente respeitando estas proporções. Esboçasse dentro deste traçado o desenho que se quer. Só depois disso a prancha estará pronta para receber dentro dos traços feitos as cores da têmpera.

A têmpera é uma mistura de água, gema de ovo e limão na qual se acrescentará pigmento de cores variadas conforme a cor que o iconógrafo quer para a composição da imagem. Estes pigmentos são normalmente pós coloridos de origem mineral (carbonatos, silicatos, óxidos, etc) ou orgânicos extraídos de plantas e animais. Ou seja na composição material do ícone encontramos reunidos os três reinos da Criação o mineral o vegetal e o animal. Mas não poderá haver nenhum elemento sintético tudo é rigorosamente natural. como uma espécie de recriação da natureza para expressar uma realidade espiritual.

As cores também têm o seu cânone, não se podem mudar as cores que estão no original. pois todas têm um significado simbólico. Por exemplo, o branco simboliza a divindade; o azul a transcendência; o verde a natureza, o crescimento, a fertilidade e esperança; o marrom a densidade da matéria; o vermelho, a incandescência e o fervor; a púrpura a riqueza espiritual; o ocre ou dourado a cor do céu. Aliás, uma das técnicas de composição é misturar um pouco de ocre com todas as cores e assim atingir-se uma impressão de unidade em toda a obra. O pigmento preto é interditado, as cores escuras que se vê em alguns ícones são conseguidas a partir da mistura do marrom, do verde e do azul.

Para se conseguir a imagem que se quer é preciso levar em conta algumas regras. Começa-se pintando das bordas para o centro, de cima para baixo e das cores escuras para as claras, a luminosidade do olhar é rigorosamente a última coisa a se fazer antes da inscrição que se aplica na pintura para identificar o ícone.

É preciso também manter rigorosamente a representação dos objetos constitutivos do ícone. O iconógrafo não é livre para compor a imagem, ela já está, a longo tempo, determinada pelo Episcopado da Igreja. O iconógrafo não realiza a sua obra, é ele que se submete ao serviço que se propôs, é na verdade um exercício de ascese. Mas, inegavelmente sempre haverá algo de sua alma no trabalho. Apesar do artista não assinar seu trabalho, é possível identificarem-se determinados autores de ícones bem característicos (Roublev, por exemplo) ( Iconógrafo russo do século XV. Famoso por ter composto o ícone chamado a Hospitalidade de Abraão, no qual a Igreja vê um símbolo da SSma. Trindade). O espírito e o temperamento de um povo, onde o ícone é realizado, também é possível se reconhecer (ícones russos, gregos, coptas, etc)

É preciso saber ainda que na Igreja Ortodoxa o simbólico não é algo estéreo ou abstrato, é sempre encarnado, tem sempre que ter uma correspondência com o mundo real. Com a arte iconográfica também é assim.

O ícone tem duas particularidades, interessantes de se conhecer. Características que o fazem ser algo verdadeiramente vivo. A primeira é relativa a composição material desta prancha, junto com a aplicação da têmpera nela, este conjunto faz que a imagem não seja uma coisa estática, mas ao contrário, dinâmica. Com o passar dos séculos estas cores vão penetrando no gesso, e vai tomando uma textura, uma intensidade de luz e uma coloração toda própria, o que fará de cada trabalho uma obra única que não poderá ser integralmente copiada. A outra característica é que a arquitetura e os objetos são pintados em dissonometria (Os objetos construções e paisagens não estão em harmonia métrica) e toda a perspectiva é invertida. Ou seja o ponto de fuga não está na profundidade da imagem e sim fora da pintura.

O que isso significa para o observador? É que quando se contempla um ícone, mesmo que o racional não perceba, o mais profundo da alma pressente que se está dentro da imagem, fazendo parte de uma realidade que tem outros princípios e outra lógica, descobre-se, de fato, que se faz parte integrante da Beleza que Se revela.

Para saber mais:
Pavle Evdokimov – La teologia della bellezza, Roma, 1971
I. Mª. Donadeo-Os Ícones, Ed. Paulinas, 1996 e Ícones de Cristo e dos Santos, 1997
Egon Sendler S.J. – L’Icône, imagem do invisível,
Colletion Christus, Nº54 – Desclée de Brouwer, 1987

S. Exa. Revma. Chrisóstomo
Arcebispo do Rio de Janeiro e Olinda-Recife
"Boletim Interparoquial", novembro de 2007