sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

"Reflexões sobre Abstinência e Jejum"

Geralmente quando ouvimos falar em jejum e abstinências o primeiro sentimento que temos não é muito agradável, normalmente é o de privação. A 1ª idéia que nos vem à cabeça é ter que abdicar de coisas que nos agradam e talvez de outras que até já nem sabemos viver sem elas, e claro, consideramos isso muito desagradável. Isso se nos apresenta como um impedimento à satisfação das nossas necessidades, ou como uma restrição à nossa liberdade de escolha.

Na verdade esta questão é completamente falsa. O que acontece é exatamente o contrário. Prestando atenção veremos que existe um processo natural que se manifesta em quase todas as áreas de atividade da nossa vida. Quando almejamos algo de importante valor para o projeto de vida que temos, o imediato movimento interior que se instala em nós é o de concentrar o maior esforço possível para atingir nosso objetivo.

Eis aí um clássico exemplo do que é verdadeiramente ABSTINÊNCIA! Fica demonstrado que (des) invertendo o entendimento - consequentemente a vivência - a abstinência não é uma privação, é de fato a possibilidade de um ganho. Vejamos bem, o movimento de concentração em algo, exige necessariamente renúncia a outras coisas. Esta renúncia não é uma imposição ou constrangimento, mas uma escolha livre e soberana em vista de um bem maior. Somente a guisa de ilustração: Seria uma temeridade que um virtuose do piano também quisesse jogar vôlei, um atleta, não querer abandonar as noitadas com bebidas e tabaco, um adulto não querer abrir mão da peladinha, todas as tardes, com os amiguinhos da rua ou alguém desejar viver um grande amor sem deixar de flertar com todas as possibilidades românticas que lhe surgem. Assim é na profissão, no amor e em quase tudo o mais na vida. Querendo muito alguma coisa temos que concentrar os nossos esforços nisso, abdicando de tudo que nos atrapalhe ou desvie do nosso objetivo. Caso contrário, enfrentaremos dificuldades práticas e uma série de questões que imediatamente se impõe à nossa mente: Porque não deu certo? Faltou esforço? Não era mesmo para acontecer? Deus não quis? Queríamos de verdade ou apenas achávamos bom que acontecesse? Nesta altura já estamos, à deriva, em plena tempestade psíquica.

Processo semelhante também acontece na busca espiritual que se vive ao interior da Igreja.

Sabemos que, por Sua infinita misericórdia, o perdão, a cura e a salvação são concedidos por Deus aos homens, Ele é a origem de tudo, Ele opera a salvação pela Graça, de graça, e exclusivamente porque Ele quer. Portanto, não se pode, nem por um segundo, desconsiderar-se o mistério da Economia salvífica do Cristo. Mas o homem não foi criado para um joguete nas mãos de um deus despótico; ao contrário, o homem foi criado para uma participação ativa, soberana e efetiva na dinâmica da Criação como um todo. Conseqüentemente, no drama da sua salvação pessoal, o homem também é chamado à participação.

A parte que nos cabe neste diálogo participativo, em vista da salvação pessoal, é o que podemos chamar de: ascese, exercícios de fé, esforços espirituais. Ou seja, se quisermos verdadeiramente e de uma forma profunda viver uma vida santa, guiados pelo Espírito de Deus, então teremos necessariamente, nós mesmos, tão somente que abrir “espaço” em nosso interior para que Deus opere. Era sobre isso que o santo Apóstolo dos Gentios se referia quando disse: ...logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; (Gl. 2,20). Mas como é impossível que a luz coabite com a escuridão também é certo, claro e cristalino que para o Senhor coabitar em nossos corações é condição imprescindível renúncia à todas as coisas que sejam contrárias ou que nos distraia deste chamado que Deus nos faz, o de que sejamos templos do Espírito Santo.

Portanto, se resolvemos nos entregar a este divino propósito, o de sermos Discípulos do Cristo, Amigos do Senhor, ou mesmo apenas buscamos os salutares benefícios das consolações espirituais concedidos por Deus, então é necessário e inevitável, concentrar esforços para purificar a criatura que somos; isso se faz no exercício das virtudes cristãs. É preciso consciência. Afinal são as próprias palavras do Senhor que nos alerta: “Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios”, (Mc. 7, 21). Preocupante, mas como o Mal entra no coração? As Sagradas Escrituras nos diz algo a respeito: “...porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. (Mt. 6, 21), e ainda “São os teus olhos a lâmpada do teu corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; mas, se forem maus, o teu corpo ficará em trevas.” (Lc. 11, 34). Este “olhar” podemos entendê-lo como uma imagem do: para o quê direcionamos a nossa vontade. Precisamos reconquistar a soberania sobre este nosso olhar, decidir quais tesouros almejar, purificar o olhar para “não se perder o rumo”.

Mas é possível ao homem comum experimentar tal estado de pureza interior?? Mais uma vez é o próprio Senhor que nos responde: “...Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível”. (Mt. 19, 26). O homem não tem como adquirir, por si próprio, um estado de verdadeira pureza. O Senhor Altíssimo, Criador dos céus e da terra é a fonte única, também, de todas as virtudes. Assim é que a participação na divina Pureza se revista do caráter de uma dádiva que, como tal, só pode ser concedida, unicamente, por Deus. Nós apenas precisamos oferecer-nos à obra da Graça. É a Luz afastando a escuridão. A nossa alma será purificada, com a Graça de Deus, toda vez que nos abstermos de colaborar com o adversário. Era a isso que S. Serafim de Sarov chamava de “Comércio espiritual”. Rejeitamos a solidariedade com as coisas deste mundo, materiais ou psíquicas, em troca dos bens espirituais. Esta é a nossa entrega: recusamos-nos contribuir com os inimigos de Deus e, neste vazio de alma resultante, ficamos à espera do Senhor de misericórdia agir.

É preciso saber que o Adversário não perde nenhuma oportunidade de “alimentar-se” com os nossos vãos pensamentos. Pois, em nossas imaginações, nossos desejos e fantasias, ou seja, o nosso psíquico “olhar” interior, é onde o demônio encontra munição e facilidades para as suas armadilhas e sugestões. São principalmente destes vãos pensamentos que necessitamos praticar a abstinência e o jejum. Ou seja, é urgente vigiar a mente e exercitarmo-nos na prática de pensamentos virtuosos, objetivos e realistas. O resultado disso é que, espiritualmente, de fato, “mata-se de fome” o demônio. Sublime maravilha! Nós nos recusamos alimentar o inimigo e como recompensa deste acirrado combate ficamos com a alma nutrida pela Graça. Esta é a abstinência que sacia.

Esse é o profundo e definitivo jejum! Todos os jejuns e abstinências que a Igreja nos pede são inicialmente apenas jejuns exteriores, jejuns do corpo carnal. Porém sabemos que o homem não é somente carne; junto com ela coexiste o, ainda desconhecido, “homem interior” de cada um.

A pessoa é um organismo composto e complexo, onde todas as suas “partes” estão intimamente interligadas. Portanto o jejum na carne não é apenas da carne, ele tem um conteúdo simbólico, na medida em que, através de uma relação de correspondência, estabelece uma estreita e misteriosa ligação com todo o resto do ser. Na verdade a abstinência de alimentos serve como uma espécie de ferramenta para a purificação da alma. Abstemos-nos dos alimentos carnais para nos fortalecermos espiritualmente para as abstinências da alma, para a abstinência dos pensamentos. Nós diminuímos a ingestão de matéria para o corpo em contrapartida o Senhor derrama na alma Suas Graças espirituais, a alma se ilumina e fortalece todo o ser.

Mas é possível ao homem comum manter uma tão rígida vigilância sobre a sua mente? Sim, mas para isso precisamos contar com uma poderosa aliada: a oração.

Mas isso já são contas de um outro rosário...

Arcebispo Chrisóstomo
Boletim Interparoquial, jun/2007